Texto a partir da conversa realizada na ocasião das aulas no PPGAC – UFF ministradas por Jessica Gogan
Conversa entre Cristina T. Ribas, Ana Goldenstein Carvalhães e Jessica Gogan.
{intro}
Jessica Gogan: Hoje temos o prazer de ter Ana Goldenstein e Cristina Ribas conosco para conversar sobre as relações entre arte, clínica e cuidado e suas potências políticas e poéticas. Duas pessoas que trazem perspectivas muito ricas e singulares sobre estes temas. Para maximizar a partilha, em vez de um formato de apresentação, que sempre reduz o tempo de diálogo, fiz a sugestão, como oferece o filósofo Brian Massumi referenciando Deleuze, de começar pelo meio. Na aula passada, na clínica Casa Verde, por exemplo, várias pessoas chegaram um pouco atrasadas e o grupo já estava bordando, então era preciso chegar fazendo. Isto é começar pelo meio. Então, aqui optamos por começar nosso diálogo sobre as interfaces entre arte, clínica e cuidado a partir de imagens. Eu super agradeço as duas. Cristina, que conheço há muitos anos, já colaboramos em vários projetos juntas, e Ana, que estou conhecendo agora, mas eu vi uma apresentação dela num seminário organizado pela Cristina no PPGArtes “Poéticas no Contágio” em 2021 que foi maravilhosa. Então, estou super muito de ter vocês aqui. Elas vão iniciar o diálogo entre elas e depois abrimos. Acho que talvez a gente possa começar por Cris, que tal? (…)
Chora um pouco todo dia, o que também é água. Pesquisa a água, porque tudo que molha se torna, em parte, cumplicidade com essa inundação. A água da lágrima contém água, mas é mais.
A calamidade é um encontro de mundos, mundos que não se tocavam e passam a se atravessar, uns aos outros, a pedir colo, a pedir mão, a demandar urgência. A sociedade da informação se reafirma, na verdade, como sociedade da alienação e da desreferencialização – como se já não habitássemos território nenhum. De repente, como se ninguém estivesse prestando a atenção suficiente, somos engolidos pela força reintegrativa de Gaia, em suas enxurradas catastróficas.
Os que correram da enxurrada do ciclone de Setembro, e mesmo antes daquela, sabem escutar a intensidade da chuva no telhado, escutam o rio e sabem que é hora de sair de suas casas. Mesmo que seja no meio da noite, mesmo que a noite seja incerta… mesmo que não se saiba quantos dias – e quantas noites – tudo aquilo vai durar.
É começo de Maio de 2024. A cidade onde vivo – Porto Alegre – e a região metropolitana, recebem a água de três bacias hidrográficas do estado do Rio Grande do Sul. Com chuvas recordes de mais de 300 mm em três dias, o nível de diversos rios que alimentam esta bacia sobe tanto que varia de 25 metros em áreas de serra a cerca de 6 metros em áreas de planície.
Observo incessantemente as condições climáticas porque trabalho a 300 km de distância, e numa destas noites viajei sob forte chuva de raios. Sim, o céu está caindo, como nos alertam David Kopenawa Yanomami e Ailton Krenak. Um homem morre de raio na noite que viajo, perto do momento em que passamos ao largo da cidade de Santa Cruz do Sul; uma família morre soterrada naquela mesma noite, a quilômetros dali, perto de onde me hospedo em Santa Maria – e os corpos só são encontrados 5 dias depois, debaixo de muita terra molhada. Em meio à tempestade parcamente anunciada, o motorista do ônibus nos leva a Porto Alegre com a urgência de salvar seu próprio corpo, como se a velocidade do ônibus garantisse acordar mais cedo daquele sonho-pesadelo.
Chego em casa com a eletricidade impregnada no corpo. Acordo com a previsão das chuvas chegando a Porto Alegre nos próximos dias. As estradas por onde passamos na noite anterior começam a ser sobrepostas por línguas finas de água que avançam rapidamente. E então trechos de estradas desaparecem, engolidas pela água que tem tom de barro. A separação entre estrada e campo também desaparece. Tudo se torna largo e contínuo. Pontes começam a rachar, e algumas se arrebentam, se quebram como biscoitos gigantes. Pontes que atravessei caíram.
Poucos dias depois, na cidade da bacia onde vivo, a 15 minutos de bicicleta de minha casa, vou em busca do viaduto que, em meio urbano, se torna ponto de resgate de pessoas que ainda saem de suas casas inundadas ou tornadas inacessíveis pela subida das águas – ali chegam pessoas dos bairros Sarandi, Humaitá, Vila Farrapos, São Geraldo. Não, ninguém foi alertado pelo poder público sobre a subida real e inundante das águas. Me surpreendo com o cheiro de gasolina, os barcos infláveis, as “voadeiras”, as roupas de pesca, a mistura entre civis e policiais. A imensa quantidade de civis resgantando pessoas, animais, o que se conseguiu carregar. A água toma conta da cidade e faz desaparecer tudo o que depende de rodas. A percepção tenta se ajustar. Sou transportada para a Amazônia, mas falta a floresta. A água pede navegação, reverte uma territorialidade onde a dominância era a da terra – na verdade, do cimento e do asfalto. Transformação radical, reviravolta, intrusão ou ira de Gaia, como diz Isabelle Stengers.
A cabeça viaja entre as projeções que viemos fazendo – a subida da temperatura global – e as catástrofes que estamos já vivendo há 10, 15 anos no sul do Brasil. O desequilíbrio e a destruição se tornam palpáveis, assim como a razão daquela separação e alienação entre humanos e o que passamos a chamar de natureza, como se fosse outrem que não nós mesmos. Não, nós não escutamos suficientemente o alarde ora calmo ora desesperado – e sob extrema violência – dos povos originários. 1
Narramos entre nós que estávamos mas também não estávamos preparados para isto. Afinal sabíamos a previsão dada pela destruição dos ecossistemas, a equação triste resultante da facilitação das leis ambientais em detrimento da iniciativa privada, a emissão de gases que causam o efeito estufa. O Rio Grande do Sul já foi vanguarda de leis ambientais, agora somos vanguarda de destruição catastrófica. Meu corpo tenta se sustentar entre diversos futuros colapsados, colapsados em minha frente, comigo.2
Há anos vou meio obsessiva com as águas, desenvolvendo cartografias aquosas ou molhadas, como forma de criar coordenadas de situacionalidade, de percepção territorial, de metodologias e pedagogias críticas.3
Formas de desenhar, de partilhar percepções, de constituir existência. Não consigo me desligar do fato de que a catástrofe é movida pela força das águas – que vêm do céu, que vêm do Oceano Pacífico, da Amazônia. Essas águas – e aquelas que a floresta guarda – poderiam estar correndo no meio das matas, descendo sinuosas as corredeiras, umidificando devagar, molecularmente. (Sabedoria e gestão das águas que a floresta faz…)
Cacique Timóteo fuma seu petenguá na retomada da Ponta do Arado, área indígena retomada por um grupo Mabyá Guarani, na borda do Rio Guayba em Porto Alegre, Brasil. Still do filme Guatá, 2022.
Cacique Timóteo da etnia Mbyá guarani, em conversa para o filme Guatá4 diz que guay de Guayba é como seus avós chamavam esse rio “para todos tomarem água”, sendo “ygua”, o lugar onde a gente toma água, onde a água fica concentrada”. Em alguns lugares de Porto Alegre o Guayba veio subindo lentamente, quase que silenciosamente. Em muitos lugares as pessoas não tiveram tempo de sair, como em Canoas. E também bairros foram inundados pela absoluta falta de manutenção dos sistemas de bombas5 . Nos damos conta de que a subida das águas – do esgoto, e da lama – em certas regiões da cidade não cabe em nossos sistemas cognitivos, naquilo que conhecemos da experiência de cidade, e da separabilidade até então semi-controlada com as águas marrons do Guayba.
Jorge Morinico e Cacique Timóteo caminham na retomada da Ponta do Arado, área indígena retomada por um grupo Mabyá Guarani, na borda do Rio Guayba em Porto Alegre, Brasil. Still do filme Guatá, 2022.
No fluxo das águas, a terra toda se amolece, terra que se move. Em meio à enxurrada e a água que chega por todos os lados, vou obsessiva com os mapas, com medições e alturas de terreno, com milímetros de chuva. Metro a metro, quarteirão a quarteirão, uma cidade que se reconhece em suas vizinhanças – e, sobretudo – com as águas lamacentas e, agora, também dos esgotos. Alguns de nós com acesso à informação, apavorados, prescrevendo o horror, outros sem nem saber que estariam embevecidos do horror, sem saber nadar, sem poder fechar a porta de casa (a porta que já não precisará de chave, visto que logo mais será devassada pela força das águas – e do lixo). 600 mil pessoas tem que sair de suas casas.6
As águas carregam tudo mais, convulsionam. Penetram ora lentas ora violentas. Se tornam barrentas, lodosas, não conseguimos saber dos corpos que caem, que rolam, a galharia, os plásticos, os pedaços de carros, de concreto, de muros inteiros carregados, de aço. O plástico desenha percursos, rastros de um modo de vida. O volume se agiganta, a sensação de uma transformação estrutural. O Guaíba sendo o receptor imenso dessas águas confusas, águas que buscam terra, que correm como se procurassem um leito7 , algo que as contenha. Tememos a putrefação de tudo o que é vivo, que recém morre, o que desce a serra, ou a serra descendo. Tememos a água que beberemos.
Imagem: Eduardo Seidl. Porto Alegre, Brasil.
Aquilo que as águas carregam se torna matéria desconhecida, espectro de vida em transformação. A enxurrada se torna monstruosa, é lama antropocênica – e antropogênica. É lama de partículas, lama desconhecida, que tudo engulfa e a tudo encobre. Outra pandemia. Quando a água baixa, regorgita essa matéria estranha, irreconhecível. É uma lama indigesta de Gaia – ou será que ela vai conseguir engolir tudo isto de novo?
De volta àquele viaduto amazônico-em-porto-alegre, encontro uma cidade dos comuns.8 Uma cidade onde não é preciso comprar nada, todos os bens foram exproriados, alimentos, roupas, remédios, acolhimento, gasolina para barcos. Transporte, telefone, lágrimas compartilhadas. Ali tudo é comum, sem dono, sem etiqueta, sem cartão de crédito. A recepção para os desabrigados inaugura um mundo que sempre evitamos instalar: um mundo onde dividimos tudo, onde já não somos donos de nada.
A convulsão das águas e a fábrica irrefreável de lama expõem e pedem uma reorganização de tudo, por isto expõem a nós mesmos nosso modo de vida exploratório e indigesto – para Gaia. Os mundos que são reorganizados pela revolta de Gaia apresentam todas as diferenças – sobretudo da gritante riqueza que vivemos. Mas a abundância não está para todos igualmente. Há aqueles que têm carros 4 x 4 e podem resgatar quem precisa abandonar suas casas, há aqueles que não têm botas de galocha para se livrar da leptospirose. A lama confusa é, literalmente, a desorganização que impusemos a essa terra em comum.
Debaixo do viaduto dos resgates, no abrigo temporário, na cozinha solidária, quanto duram nossas utopias?
Imagem: Eduardo Seidl. Porto Alegre, Brasil.
Dormindo entre sons de helicóptero que resgatam incessantemente, acordamos incógnitos de que calcularemos o impacto da chuvarada em perdas de capital. (Quem poderia estar lucrando, afinal…?). E sim, evidentemente, há pessoas sem trabalho, sem renda, sem alimento.9 Na cidade grande a barbárie continua. Desenha-se uma cidade temporária para os desabrigados de suas casas enlodadas e demolidas. Um verdadeiro campo de refugiados. Concebe-se que o lixão será também na mesma região – zona norte de Porto Alegre. Multiplicam-se as catástrofes. A calamidade para alguns é, afinal, mais um modo de afirmar poder. E a má gestão pública é uma recalcitrância do suprimento de direitos básicos. É absoluta falência programada, estado neoliberal que facilita tudo para o lucro privado. O diário da enchente não pára de transbordar, e a inundação é tanta, a perda é tão profunda, que ira e a incorformidade demoram para se instalar.
Olho ao redor e encontro meu corpo íntegro, ainda, mas meus olhos, mais que embebidos em águas, agora reconhecem o traço da lama em qualquer lugar – lama impregnada, paredes desenhadas, níveis de inundação. A doença que somos, nosso modo de vida não-indígena, somos engolidos por água-e-terra. As águas baixam – mas nunca sem a ameaça de subir novamente a qualquer momento. A lama que tudo recobre nos asfixia. Devolve casas, bairros, fábricas, ateliês, hortas, todas destruídas. O lodo nos gera repulsa, matéria amorfa e não desejada que é o resultado da equação que nunca quisemos encontrar.
Imagem: Eduardo Seidl. Porto Alegre, Brasil. @fototaxia
Desejamos que Gaia faça algo, que consuma esta lama. Que a reabsorva, mas ela é lixo sem categoria, descarte descomunal daquilo que produzimos – e também das nossas vidas feitas em objetos, memórias, máquinas, produtos, bens, conforto. A lama regorgitada por Gaia é matéria desconhecida, artificial, miscigenada, indistinguível. Dependemos de Gaia, de uma transformação intensiva. Desejamos que reaproveite nossas sobras – e que nos devolva algo depois de atravessarmos essa camada espessa. Talvez uma terra seca e firme para pisarmos e habitarmos, uma “terra sem males” – yvy marãe’y – como buscam e nos ensinam os Mbyá guarani. Mas Gaia sabe, apenas teremos direito se bem soubermos andar – ou será navegar – por estas terras.
*Para Hannah e Lucas, e muitos companheires com quem caminhamos nesta terra.
Ref. Isabelle Stengers. No tempo das catástrofes. Resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac & Naify, 2015.
O trânsito, do deslocamento
o privilégio de ir e vir como quem
se separa do que não quer.
Carregar peso,
reafirmar o corpo,
e depois flutar
será uma memória daquela diáspora,
primeira?
Do povo que me formou?
Vai e volta na família
– circula –
uma narrativa sobre sofrimento e
deslocamento e
carregar comida consigo.
Sobrevivência, de algum modo.
Há poucos anos me dei conta
da diáspora desse povo branco
desse povo que perdeu seus rituais
a memória, as formas a textura
a circularidade daquilo que vivia
Não, não é como o povo preto
Mas também é diáspora.
Também doeu.
E leva traumas incutidos
– desaparecidos
sob um orgulho racial.
E desaparecidos no ódio de vencer
um outro povo, subjugado, aterrado,
subsumido, povos minorizados.
Vou e volto, cresço e reapareço nessa trajetória.
Corpo de respiro de arroz e soja,
da planície explorada,
de insumo, de plantation contemporânea.
Atravessada pela exploração
– adendo, sou mulher
– adendo, sou mãe
procuro pontos suaves
como que as matinhas no meio da coxilha
onde o olho descansa e lembra
– como criança
(como olhos d’água)
de um refúgio – qualquer.
O trigo colhido,
penteado no campo amarelo.
O sol se deita, um pouco mais.
((Trabalha aquele que pesca?
No meio da estrada?
Espera a truta crescer
para poder comer ela.
Trabalha aquele que leva,
aquele que rala, aquele silo
aquela palmeira, trabalho
do nada, pinheiro, e pastagem.))
Vou e volto com o corpo encarnado
dos corpos que eu posso ser,
das versões que se desdobram,
do tempo que desliza,
escorre, entre passado e
possível.
Acompanho as sombras,
que vão caindo com o fim do dia
eu também faço sombras,
sou levada,
sorrio,
Quando venho, se choro um pouco
sorrio, quando volto
sei para onde vou.
Achei que era um arquivodesarquivo só de literatura. Só de letras.
Acheiachando no caminho de ir guardar a Hilda com meus olhos de cão ao lado do teu na prateleira. Que eu sabia que tinha. Um espaço digo. E sim, essa proximidade já conhecida entre você e a Hilda. Ao menos o você-autor-daquele-livro e a Hilda dos olhos de cão. E alguns outros mais.
Categoria estranha essa. Esse canto da prateleira.
Resumo: A história da análise institucional nos mostra o potencial dessa ferramenta: transformar, destruir e, se necessário, reconstruir instituições; mas também nutrir processos grupais e fazer pensar agenciamentos coletivos. Neste artigo partilho uma experiência em análise institucional e artes visuais tendo o desenho e o conceito de diagrama como ferramentas de uma produção coletiva. Desenvolvo como a análise institucional e o desenho ativam – juntos – um potencial criativo e especulativo, composição a partir da qual surgem impressões, traços, gestos, ‘filigranas’, ou ações multiplicadoras de um procedimento de análise que projetam, eventualmente, diagramas futuros.
Abstract: The history of institutional analysis shows us the potential of such tool: to transform, to destroy and, if necessary, rebuild institutions; but also to nurture group processes and to make think collective assemblages. In this writing I share an experience in institutional analysis and visual arts, having the making of drawing and the concept of diagram as tools for a collective production. I develop how institutional analysis and drawing activate together a creative and speculative potential, a composition from which emerge impressions, traces, gestures, ‘filigree’, or multiplying actions of an analysis procedure, projecting, eventually, future diagrams.
Uma ferramenta de análise, mas também de produção. Um coletivo de psiquiatras, trabalhadores da saúde mental, de pacientes, de pensadores, de professoras, de articulações institucionais, de desbordamentos. Um corpo de práticas desenhando trajetórias transversais, nas quais se pode descortinar aquilo que resiste ser descortinado.
A análise institucional é contemporânea a outras práticas análogas: uma mais difundida nos saberes e práticas artísticas: a crítica institucional; e outra mais difundida na sociologia, na história e na antropologia: as teorias ‘de’ ou descoloniais. Crítica e análise institucional têm, em parte, uma genealogia comum – a teoria crítica, e procuram provocar efeitos comuns: a análise das formações de poder, do que oprime, e a busca pela transformação das instituições derruindo aquilo que se cristaliza, que se institui como imutável. Então, a análise institucional, assim como a crítica e a de(s)colonialidade, procuram fomentar as capacidades inventivas da produção social a partir dos diversos modos de existência. Além disso, a análise elabora a centralidade dos processos criativos – e da estética – na sua forma de produção.
Repensar socialmente a prática era um movimento contra a dominância da técnica, no caso das práticas psiquiátricas e clínicas, e contra a direção dada pelo estado (e pelo poder centralizado) a essas práticas – deveras sistemática, familialista, generalista, alienante. Repensar socialmente a prática dependia de articulações coletivas, vivenciais, cotidianas, políticas. E é isso que faz dessa ferramenta algo tão interessante e tão movente: as conexões afetivas e a abertura à produção do desejo. A produção de desejo só é possível mediante uma articulação especulativa que seja capaz de acolher o potencial inventivo de uma coletividade, e que responda às suas necessidades.
(…)
Desenhos das conversas do Mapas para Análise Institucional. Cristina Ribas e participantes. 2017. Todos em 42 x 32 cm, papel vegetal, caneta hidrográfica.
Cartografias e diagramas: pensando com imagens e com o espaço
ART00030 – Tópico Especial
Carga horária: 30 horas/aula
Créditos: 02 (10 encontros de 3h cada)
Público alvo: Alunos do PPG, aceita alunos ouvintes
Professor(a) responsável: Dra. Cristina Thorstenberg Ribas
Professor Colaborador/PPGAV/Pós-doc PNPD/CAPES (Supervisão: Profa. Dra. Maria Amélia Bulhões)
Terças-feiras, das 9h – 12h
Início das aulas ERE: 22/03 – 11/06
Número de vagas: 25
Local: mconf ou jitsi meet (link a ser informado por e-mail)
Área de Concentração (PV/HTC) – Ambos
Aulas expositivas, seminário de leitura, compartilhamento de produção teórica e artística, escrita e desenho.
Súmula
A disciplina Cartografias e diagramas: pensando com imagens e com o espaço surge a partir do interesse em perceber que a pesquisa em arte contemporânea pode ganhar muitas novas formas de desenvolvimento quando pensada a partir da relação entre as imagens e do espaço, assim como aprende das ‘constelações’ de imagens que podem surgir nos processos de pesquisa, no qual uma certa arqueologia procura inaugurar relações singulares, tal como na obra de Aby Warburg. Neste curso, os conceitos de diagrama e cartografia (Basbaum, Mesquita, Holmes, O’Sullivan), a partir de referenciais contemporâneos diversos, mais internos ou externos às artes, são aliados para produzir processos de pesquisa e processos estéticos.
Vamos estudar a produção de cartografias visuais e diagramas aliadas à pesquisa em artes, orientada tanto para artistas como para historiadores e curadores (de Soto, O’Sullivan, Holmes, Mesquita). O objetivo é pensar não apenas a produção de imagens, as semióticas intrínsecas a elas e sua circulação (Guattari), mas a relação entre as imagens e, com isso, a produção do espaço ele mesmo. Espaço e tempo se articulam na produção de espacialidades virtuais, reais, digitais ou concretas – públicas, partilhadas, comuns, sensíveis, produtivas. Espacialidades e temporalidades não lineares, de maneira que se possa analisar também a produção do olhar ocidental e as cosmologias situadas que vem desestabilizar essa linearidade. Por isso, veremos como a pesquisa em artes pode ressaltar, também, a importância do papel da ‘cognição inventiva’ na constituição dos imaginários (e dos processos de pesquisa) num processo não objetivista mas extremamente rico entre produção de subjetividades e mundos (Kastrup, Stengers).
Diante da saturação das imagens na era digital e de seus limites, poderemos produzir maneiras de reorganizar fluxos e espacialidades, e analisar a circulação e a relação entre imagens, imaginários, espaços, sociabilidades e mundos, de forma que se possa analisar também a relação entre arte e ciência, e a produção inevitável de complexidades nesses processos de análise e produção do conhecimento (Stengers).
Objetivo
Neste curso vamos tomar conhecimento tanto da produção teórica sobre cartografia como a produção de autores e grupos tais como Bureau D’Études, Iconoclasistas, Pablo de Soto, Ricardo Basbaum etc, a partir de autores da filosofia, das artes e da história das artes, da psicologia social, da arquitetura e da geografia crítica. Os conceitos a serem investidos são cartografia subjetiva, cartografia visual, cartografia social e crítica ou contra-cartografia, cartografia como método de pesquisa, diagrama icônico, diagrama funcional, geopsiquiatria, espaço, virtualidade, complexidade, invenção, especulação, produção de conceitos, entre outros.
O conteúdo da disciplina será revertido sobre os problemas da pesquisa em arte e da criação, da visualidade e do imaginário, e demais problemas da estética na contemporaneidade, de maneira que o(a)s aluno(a)s tenham acesso a um conteúdo interdisciplinar que diversifica a pesquisa em artes e a relaciona com outras áreas do conhecimento.
A disciplina tem por objetivo também realizar um percurso conceitual e abrir espaços de intervenção e diálogo com a pesquisa dos(as) mestrando(a)s e doutorando(a)s – que são convidados a partilharem suas pesquisas e participarem do seminário de leituras, auxiliando-os no desenvolvimento de seus trabalhos.
Método de trabalho
No modo ERE as aulas serão realizadas em sala de aula virtual. Manteremos um encontro por semana com duração de 3h. Os encontros em sala de aula virtual serão 10 ao total. As aulas em modo ERE mantém a estratégia de ensino da disciplina presencial: aulas expositivas e dialogadas, realização de seminários por parte da/dos aluna/os apresentando leituras e seus processos de pesquisa, análise e discussão conjunta de estudos de caso, e um trabalho final.
Avaliação
Presença mínima de 75% das aulas. Cada aluna/aluno deverá participar de ao menos um seminário com leitura de texto, partilha do seu processo de pesquisa e um trabalho final de até 12 páginas ao final do semestre.
Conteúdo programático
O cronograma completo de leitura será detalhado na primeira semana de aulas, cujas leituras estão listadas na bibliografia. Aulas expositivas serão preparadas pela professora, relacionando a produção de teórico(a)s, artistas, processos e projetos da arte contemporânea e afins, nos seus cruzamentos e atravessamentos com os estudos da comunicação, a psicologia social e os estudos da cognição e da subjetividade.
Bibliografia (a ser revisada e atualizada)
*Todos os textos serão compartilhados em drive/pdf ou link na internet.
Basbaum, Ricardo. Além da pureza visual. Porto Alegre: Editora Zouk, 2007.
Bureau D’Études, Holmes, Brian and Lomme, Freek. An Atlas of agendas: Mapping the power, mapping the commons. Paris: Onomatopee, 2013.
Kollectiv Orangotango. This is Not an Atlas: A Global collection of counter-cartographies. Verlag/Bielefeld: Transcript / Rosa de Luxemburg Stifund 2018. Disponível em < https://notanatlas.org>
Iconoclasistas (Julia Risler e Pablo Aires). Manual de mapeo colectivo: recursos cartográficos críticos para processos territoriais de criação colaborativa. Buenos Aires: Tinta Limón e os editores, 2013.
Kastrup, Virginia. A invenção de si e do mundo. Uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
Kastrup, V.; Passos, E. Passos. Políticas da cognição, Porto Alegre: Sulina, 2008
Guattari, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990.
Guattari, Félix. O Insconsciente Maquínico. Campinas: Papirus Editora, 1988.
Guattari, Félix. Schizoanalytic Cartographies. London/New York: Bloomsbury, 2013. (versão em espanhol disponível em PDF)
Holmes, Brian, Guattari’s Schizonanalytic Cartographies. In: Continental Drift. Disponível em <http://brianholmes.wordpress.com/2009/02/27/guattaris- schizoanalytic-cartographies> [Acessado em Junho 2013]
Mesquita, André. Mapas dissidentes: contracartografia, poder e resistência. São Paulo: Humanitas, 2019.
Michaud, Philippe-Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento. Belo Horizonte: Contraponto, 2021.
O’Sullivan, S., “On the Diagram (and a Practice of Diagrammatics)”. Em: Situational Diagram, eds. Karin Schneider and Begum Yasar, New York: Dominique Lévy, 2016. ISBN 978-1-944379-09-4
Ribas, Cristina T., “Complexidade, Cartografia de”. Em: Indisciplinar. UFMG, Belo Horizonte, 2017. <http://blog.indisciplinar.com/sobre-a-revista-2/> (artigo) [acessado em 03/05/2017]
Ribas, Cristina T. “Diagramas especulativos a partir da análise institucional, ‘desejos de grupo’ no Brasil em crise”. Em: Revista Modos, no prelo. 2022
Stengers, Isabelle, Power and Invention: Situating Science. University of Minesota Press, Minneapolis, 1997.
Stengers, Isabelle. A invenção das ciências modernas. São Paulo: Ed. 34., 2002
Warburg, Aby. Mnemosyne Atlas. (e textos) https://warburg.library.cornell.edu/panel/b
Vídeos e filmes
Brian Holmes. Guattari’s Cartographies: Territory, Subjectivity, Existence. 2011
Este No Es un Atlas – Un documental sobre contra-cartografías. Kollectiv orangotango. Berlim, 2019 <https://notanatlas.org/videos/>
Cidades Multiespécies (de Soto, et al.) , Apresentação final de disciplina da Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPB, ministrada por Prof. Dr. Pablo de Soto, 15/06/2021
Virginia Kastrup (palestra)
As políticas da cognição e a invenção de um mundo comum e heterogêneo
a língua é uma coisa impressionante. li há pouco, e imediatamente absorvi o vocábulo ‘bostejar’ (ie naquela tragicômica crônica da mentalidade crasse média da barra – ‘há grupos mídias sociais etc para bostejarem’). a liberdade dentro de uma coisa entendida como língua é quase territorializante, não fosse a luta de classes sempre presente pra desbancar a mentalidade da classe média e abrir franca desterritorialização. #mundosinacabados#lavaroupasuja#privilegiobranco
Alguém imagina-se sem laterais. Sem classificações. Sem trilhos. Tudo o que tem a cuidar é o seu próprio corpo. Alimentado com café e muito açúcar. Alimentado com o que sobra de afeto dos outros que passam. Ou, cuidado bem de dentro de casa, ou bem cuidado numa casa-coletiva que lhe produz junto, como engrenagem macia. Vida que borda, vida que compartilha, vida que aprende a cuidar do outro. Vida que se separa de si mesma, que imagina outras realidades, mais materiais e mais imagéticas que essa convencionada aqui entre nossos corpos. Vida que não se separa da vida dos outros.
Uma das loucuras do Brasil é essa soltura de modos de gente que se acumulam nas calçadas ou que se escondem e se misturam nas instituições manicomiais e nas casas compartilhadas. Que cantam por aí. Que fazem teatro. E que dão discursos nos bancos corruptos.
A loucura não é só do Brasil, claro. Mas alguma razão há por que tem tanta loucura aqui. E há algo que faz essa loucura visível, muito visível. Ou são meus olhos que vêem demais a soltura da loucura.
Há modulações da loucura, assim como há modulações do cuidado da loucura.
A análise da loucura, por sua vez, não deve ser uma que a abafa. Ou moraliza. Não deve ser uma que medicaliza, uma que faz a loucura desaparecer. Nesse sentido, deve ser uma análise de cuidado ativo, produtivo, que não multiplica a loucura per se, mas que encontra com elas caminhos de efetuação da vida. A análise da loucura deve tornar-se análise do desejo.
A análise do desejo produz uma trama fluída, que compõe com a liberdade da loucura. Mas com o fim da liberdade detecta-se a expressão de microfascismos. Ali a loucura ‘vira’, é outra loucura. Que nos chama aos nossos limites. Olha pra isso. Olha que loucura! Já não mais cremos no que vemos.
O que é que se concentrou no corpo daquele homem-policial? Que energia ou fraqueza foi transferida a seu gatilho que disparou e que matou o camelô na calçada da Lapa? (São Paulo) O homem é logo submetido a análises patologizantes – sua esquizofrenia, suas neuroses, suas psicoses, seus medos, suas nóias, seus crimes anteriores. Arrisco dizer: sua loucura primeira e última: ser policial. O mesmo se faz com aqueles que protestam, claro. Mas esses são classificados como loucos ou perigosos para que imediatamente seu potencial político seja apagado. Arriscam dizer: sua loucura: o desejo de protesto. A personificação dos casos não pode, contudo, interromper a compreensão de como os eventos são sintomáticos de modos sociais, de organizações e instituições que nos formalizam. Ou às quais resistimos.
É nesse ponto que a análise da loucura não pode descansar. Ela vai perceber as sutilezas, as especializações, as acoplações com o poder. A loucura higienista, que se torna controle da vida alheia. Que faz gente desaparecer, gente morrer de fome, gente vadiar sem casa, gente revirar-se em resistência. A análise da loucura vai tentar ler aquilo que autoriza a expressão das linhas mais e menos visíveis de microfascismos que, por sua vez, revelam sua relação intrínseca com uma superestrutura. O fascismo na sua dimensão macropolítica.
Loucura já conhecida, disfarçada de política. Loucura que não é o governo do navio dos malucos, daqueles soltos e libertos, daqueles exilados, e daqueles autonomizados, que criam e que diferem. Mas daqueles que marcham juntos diante de um altar, que desejam um porvir que não chegará em vida, que vendem suas almas.
Entre a loucura do fervor religioso, do fascismo e da homofobia não há muita diferença. Elas se associam ao discurso do poder e de uma moral normalizante que autoriza o massacre à luz do dia de casais gays, de povos indígenas, de velhos e de pobres negros, de mulheres fortes e de prostitutas, e dos loucos libertos por eles mesmos, que anunciam sair de um tipo de mundo, de um mundo estritamente normal e economicamente produtivo.
Eu olho para esse modo da loucura que produz uma moral maior sem ética. São loucuras higienizantes que operam nos tribunais, nos conluios econômicos, nos esquadrões policiais. Sua fraqueza é um desejo de poder. A loucura colada ao microfascismo e ao poder de estado produz uma realidade comum que se opõe a abrir qualquer negociação social. Bolsonaro. Cunha. E talvez seja errado analisar desejo de poder chamando-o de loucura. Talvez seja uma tentativa de captar e isolar ao modo da patologia aquilo que já não mais podemos aceitar.
A análise da loucura não é, então, detectar uma loucura boa e uma loucura má. Nem isolar a loucura como sintoma de uma pessoa só. A loucura, assim como o desejo, são produções sociais. Analisar a loucura é ir por outros lados: ir para além da domesticação da loucura e ao mesmo tempo estar atento a intervir na loucura da moral sem ética que se facializa com o poder, que se expressa como controle, que é esquadrinhada e cientificizada em planos de ordem e produtividade social.
Da análise da loucura, da loucura solta, que não tem medo de destruir a si, pode emergir por meio de um escrutínio incontrolável, da abertura de um diagrama complexo, o poder que centraliza o fascista, e ele, transparente, isolado, neurótico e fóbico, com medo da multidão promíscua.
\\Research Processes, Knowledge Production and Processual Creativity:
//Schizoanalytic Cartographies in Brazil
Cristina Thorstenberg Ribas
Synopsis*
In this thesis I analyse Félix Guattari’s notion of schizoanalytic cartography in its theoretical and pragmatic development in Brazil. Cartographic practices have been developed extensively in Brazil since the 1980’s, stemming from the theories and practice of Guattari and from French and Italian institutional analysis. Schizoanalytic cartographies are broadly developed as a tool to work through collective processes, as a device to analyse the collective agency of desire. Cartographies both map and create: they are realised by those who want to produce their own lives, while resisting oppression, and modes of capitalist subjectivation subsuming desire, affect and creativity itself. This thesis therefore traces schizoanalytic cartographies that devise new research processes and new propositions of organisation, subjectivation and institutionalization in Brazil. It explores key Guattarian terms ‘transversality’ and ‘micropolitics’, to analyse the practices of research processes in academia, such as Contemporary Subjectivity Research Group, and theatre groups working in transversal with mental health care, such as Ueinzz Theatre Company. I focus on how these processes work across institutions, theatre practices, the clinic and the social field. The thesis traces their work on “processual subjectivation” and “processual creativity”, proposing the “processual” as the core form of assemblage between subjects, modes of expression and institutions. This thesis argues against reductive notions of politically engaged art that pose oppositions between aesthetics and political practice, and against institutionally circumscribed definitions of practice-based research. Instead, the thesis proposes new frameworks and different genealogies of practice that transversalise and radicalise aesthetic production, connecting it in new ways to political grounds, outside of the agenda of larger cultural institutions, art worlds and markets. Through the examples of practices analysed, it argues that schizoanalytic cartographies bring “processual creativity” and the “production of subjectivity” into relation, and allow us to reassemble the fields of politics, aesthetics and knowledge production.
* Thesis to be submitted by September 2016 @Art Department, Goldsmiths College, University of London, UK. Bolsista Capes – Doutorado Pleno, 2012.
Fumaça. O cigarro começa a fumar a si mesmo. Enquanto eu entro numa deriva mental e prazeiroza sobre o morrendo que ocupa esse cigarro em mim. O que acontece com o fumar? Com a contagem do tempo. Com a contagem dos cigarros. Essa contagem de hora definida. Essa performance pra mim mesma. A factualidade da vida. A evanescência.
Instrução da ação: fumar um cigarro para cada ação de cuidado reprodutivo. Fumar um cigarro ao fazer o café da manhã da filha. Fumar um cigarro ao levá-la na escola. Fumar um cigarro ao responder à mensagens para uma pessoa amiga. Fumar um cigarro quando tiver me arrumando para trabalhar. Fumar um cigarro quando colocar as roupas na máquina de lavar. Fumar um cigarro quando fizer a lista de compras. …
Cada dia ensaio um novo cinzeiro. Hoje usei o papel de guardanapo ou de secar as mãos de um banheiro que não lembro qual foi. O cigarro que fumara a si mesmo eu não apaguei mas deixei ali. Agora fuma o papel.
Tem o fazer nada do cigarro.