Texto a partir da conversa realizada na ocasião das aulas no PPGAC – UFF ministradas por Jessica Gogan
Conversa entre Cristina T. Ribas, Ana Goldenstein Carvalhães e Jessica Gogan.
{intro}
Jessica Gogan: Hoje temos o prazer de ter Ana Goldenstein e Cristina Ribas conosco para conversar sobre as relações entre arte, clínica e cuidado e suas potências políticas e poéticas. Duas pessoas que trazem perspectivas muito ricas e singulares sobre estes temas. Para maximizar a partilha, em vez de um formato de apresentação, que sempre reduz o tempo de diálogo, fiz a sugestão, como oferece o filósofo Brian Massumi referenciando Deleuze, de começar pelo meio. Na aula passada, na clínica Casa Verde, por exemplo, várias pessoas chegaram um pouco atrasadas e o grupo já estava bordando, então era preciso chegar fazendo. Isto é começar pelo meio. Então, aqui optamos por começar nosso diálogo sobre as interfaces entre arte, clínica e cuidado a partir de imagens. Eu super agradeço as duas. Cristina, que conheço há muitos anos, já colaboramos em vários projetos juntas, e Ana, que estou conhecendo agora, mas eu vi uma apresentação dela num seminário organizado pela Cristina no PPGArtes “Poéticas no Contágio” em 2021 que foi maravilhosa. Então, estou super muito de ter vocês aqui. Elas vão iniciar o diálogo entre elas e depois abrimos. Acho que talvez a gente possa começar por Cris, que tal? (…)
Chora um pouco todo dia, o que também é água. Pesquisa a água, porque tudo que molha se torna, em parte, cumplicidade com essa inundação. A água da lágrima contém água, mas é mais.
A calamidade é um encontro de mundos, mundos que não se tocavam e passam a se atravessar, uns aos outros, a pedir colo, a pedir mão, a demandar urgência. A sociedade da informação se reafirma, na verdade, como sociedade da alienação e da desreferencialização – como se já não habitássemos território nenhum. De repente, como se ninguém estivesse prestando a atenção suficiente, somos engolidos pela força reintegrativa de Gaia, em suas enxurradas catastróficas.
Os que correram da enxurrada do ciclone de Setembro, e mesmo antes daquela, sabem escutar a intensidade da chuva no telhado, escutam o rio e sabem que é hora de sair de suas casas. Mesmo que seja no meio da noite, mesmo que a noite seja incerta… mesmo que não se saiba quantos dias – e quantas noites – tudo aquilo vai durar.
É começo de Maio de 2024. A cidade onde vivo – Porto Alegre – e a região metropolitana, recebem a água de três bacias hidrográficas do estado do Rio Grande do Sul. Com chuvas recordes de mais de 300 mm em três dias, o nível de diversos rios que alimentam esta bacia sobe tanto que varia de 25 metros em áreas de serra a cerca de 6 metros em áreas de planície.
Observo incessantemente as condições climáticas porque trabalho a 300 km de distância, e numa destas noites viajei sob forte chuva de raios. Sim, o céu está caindo, como nos alertam David Kopenawa Yanomami e Ailton Krenak. Um homem morre de raio na noite que viajo, perto do momento em que passamos ao largo da cidade de Santa Cruz do Sul; uma família morre soterrada naquela mesma noite, a quilômetros dali, perto de onde me hospedo em Santa Maria – e os corpos só são encontrados 5 dias depois, debaixo de muita terra molhada. Em meio à tempestade parcamente anunciada, o motorista do ônibus nos leva a Porto Alegre com a urgência de salvar seu próprio corpo, como se a velocidade do ônibus garantisse acordar mais cedo daquele sonho-pesadelo.
Chego em casa com a eletricidade impregnada no corpo. Acordo com a previsão das chuvas chegando a Porto Alegre nos próximos dias. As estradas por onde passamos na noite anterior começam a ser sobrepostas por línguas finas de água que avançam rapidamente. E então trechos de estradas desaparecem, engolidas pela água que tem tom de barro. A separação entre estrada e campo também desaparece. Tudo se torna largo e contínuo. Pontes começam a rachar, e algumas se arrebentam, se quebram como biscoitos gigantes. Pontes que atravessei caíram.
Poucos dias depois, na cidade da bacia onde vivo, a 15 minutos de bicicleta de minha casa, vou em busca do viaduto que, em meio urbano, se torna ponto de resgate de pessoas que ainda saem de suas casas inundadas ou tornadas inacessíveis pela subida das águas – ali chegam pessoas dos bairros Sarandi, Humaitá, Vila Farrapos, São Geraldo. Não, ninguém foi alertado pelo poder público sobre a subida real e inundante das águas. Me surpreendo com o cheiro de gasolina, os barcos infláveis, as “voadeiras”, as roupas de pesca, a mistura entre civis e policiais. A imensa quantidade de civis resgantando pessoas, animais, o que se conseguiu carregar. A água toma conta da cidade e faz desaparecer tudo o que depende de rodas. A percepção tenta se ajustar. Sou transportada para a Amazônia, mas falta a floresta. A água pede navegação, reverte uma territorialidade onde a dominância era a da terra – na verdade, do cimento e do asfalto. Transformação radical, reviravolta, intrusão ou ira de Gaia, como diz Isabelle Stengers.
A cabeça viaja entre as projeções que viemos fazendo – a subida da temperatura global – e as catástrofes que estamos já vivendo há 10, 15 anos no sul do Brasil. O desequilíbrio e a destruição se tornam palpáveis, assim como a razão daquela separação e alienação entre humanos e o que passamos a chamar de natureza, como se fosse outrem que não nós mesmos. Não, nós não escutamos suficientemente o alarde ora calmo ora desesperado – e sob extrema violência – dos povos originários. 1
Narramos entre nós que estávamos mas também não estávamos preparados para isto. Afinal sabíamos a previsão dada pela destruição dos ecossistemas, a equação triste resultante da facilitação das leis ambientais em detrimento da iniciativa privada, a emissão de gases que causam o efeito estufa. O Rio Grande do Sul já foi vanguarda de leis ambientais, agora somos vanguarda de destruição catastrófica. Meu corpo tenta se sustentar entre diversos futuros colapsados, colapsados em minha frente, comigo.2
Há anos vou meio obsessiva com as águas, desenvolvendo cartografias aquosas ou molhadas, como forma de criar coordenadas de situacionalidade, de percepção territorial, de metodologias e pedagogias críticas.3
Formas de desenhar, de partilhar percepções, de constituir existência. Não consigo me desligar do fato de que a catástrofe é movida pela força das águas – que vêm do céu, que vêm do Oceano Pacífico, da Amazônia. Essas águas – e aquelas que a floresta guarda – poderiam estar correndo no meio das matas, descendo sinuosas as corredeiras, umidificando devagar, molecularmente. (Sabedoria e gestão das águas que a floresta faz…)
Cacique Timóteo fuma seu petenguá na retomada da Ponta do Arado, área indígena retomada por um grupo Mabyá Guarani, na borda do Rio Guayba em Porto Alegre, Brasil. Still do filme Guatá, 2022.
Cacique Timóteo da etnia Mbyá guarani, em conversa para o filme Guatá4 diz que guay de Guayba é como seus avós chamavam esse rio “para todos tomarem água”, sendo “ygua”, o lugar onde a gente toma água, onde a água fica concentrada”. Em alguns lugares de Porto Alegre o Guayba veio subindo lentamente, quase que silenciosamente. Em muitos lugares as pessoas não tiveram tempo de sair, como em Canoas. E também bairros foram inundados pela absoluta falta de manutenção dos sistemas de bombas5 . Nos damos conta de que a subida das águas – do esgoto, e da lama – em certas regiões da cidade não cabe em nossos sistemas cognitivos, naquilo que conhecemos da experiência de cidade, e da separabilidade até então semi-controlada com as águas marrons do Guayba.
Jorge Morinico e Cacique Timóteo caminham na retomada da Ponta do Arado, área indígena retomada por um grupo Mabyá Guarani, na borda do Rio Guayba em Porto Alegre, Brasil. Still do filme Guatá, 2022.
No fluxo das águas, a terra toda se amolece, terra que se move. Em meio à enxurrada e a água que chega por todos os lados, vou obsessiva com os mapas, com medições e alturas de terreno, com milímetros de chuva. Metro a metro, quarteirão a quarteirão, uma cidade que se reconhece em suas vizinhanças – e, sobretudo – com as águas lamacentas e, agora, também dos esgotos. Alguns de nós com acesso à informação, apavorados, prescrevendo o horror, outros sem nem saber que estariam embevecidos do horror, sem saber nadar, sem poder fechar a porta de casa (a porta que já não precisará de chave, visto que logo mais será devassada pela força das águas – e do lixo). 600 mil pessoas tem que sair de suas casas.6
As águas carregam tudo mais, convulsionam. Penetram ora lentas ora violentas. Se tornam barrentas, lodosas, não conseguimos saber dos corpos que caem, que rolam, a galharia, os plásticos, os pedaços de carros, de concreto, de muros inteiros carregados, de aço. O plástico desenha percursos, rastros de um modo de vida. O volume se agiganta, a sensação de uma transformação estrutural. O Guaíba sendo o receptor imenso dessas águas confusas, águas que buscam terra, que correm como se procurassem um leito7 , algo que as contenha. Tememos a putrefação de tudo o que é vivo, que recém morre, o que desce a serra, ou a serra descendo. Tememos a água que beberemos.
Imagem: Eduardo Seidl. Porto Alegre, Brasil.
Aquilo que as águas carregam se torna matéria desconhecida, espectro de vida em transformação. A enxurrada se torna monstruosa, é lama antropocênica – e antropogênica. É lama de partículas, lama desconhecida, que tudo engulfa e a tudo encobre. Outra pandemia. Quando a água baixa, regorgita essa matéria estranha, irreconhecível. É uma lama indigesta de Gaia – ou será que ela vai conseguir engolir tudo isto de novo?
De volta àquele viaduto amazônico-em-porto-alegre, encontro uma cidade dos comuns.8 Uma cidade onde não é preciso comprar nada, todos os bens foram exproriados, alimentos, roupas, remédios, acolhimento, gasolina para barcos. Transporte, telefone, lágrimas compartilhadas. Ali tudo é comum, sem dono, sem etiqueta, sem cartão de crédito. A recepção para os desabrigados inaugura um mundo que sempre evitamos instalar: um mundo onde dividimos tudo, onde já não somos donos de nada.
A convulsão das águas e a fábrica irrefreável de lama expõem e pedem uma reorganização de tudo, por isto expõem a nós mesmos nosso modo de vida exploratório e indigesto – para Gaia. Os mundos que são reorganizados pela revolta de Gaia apresentam todas as diferenças – sobretudo da gritante riqueza que vivemos. Mas a abundância não está para todos igualmente. Há aqueles que têm carros 4 x 4 e podem resgatar quem precisa abandonar suas casas, há aqueles que não têm botas de galocha para se livrar da leptospirose. A lama confusa é, literalmente, a desorganização que impusemos a essa terra em comum.
Debaixo do viaduto dos resgates, no abrigo temporário, na cozinha solidária, quanto duram nossas utopias?
Imagem: Eduardo Seidl. Porto Alegre, Brasil.
Dormindo entre sons de helicóptero que resgatam incessantemente, acordamos incógnitos de que calcularemos o impacto da chuvarada em perdas de capital. (Quem poderia estar lucrando, afinal…?). E sim, evidentemente, há pessoas sem trabalho, sem renda, sem alimento.9 Na cidade grande a barbárie continua. Desenha-se uma cidade temporária para os desabrigados de suas casas enlodadas e demolidas. Um verdadeiro campo de refugiados. Concebe-se que o lixão será também na mesma região – zona norte de Porto Alegre. Multiplicam-se as catástrofes. A calamidade para alguns é, afinal, mais um modo de afirmar poder. E a má gestão pública é uma recalcitrância do suprimento de direitos básicos. É absoluta falência programada, estado neoliberal que facilita tudo para o lucro privado. O diário da enchente não pára de transbordar, e a inundação é tanta, a perda é tão profunda, que ira e a incorformidade demoram para se instalar.
Olho ao redor e encontro meu corpo íntegro, ainda, mas meus olhos, mais que embebidos em águas, agora reconhecem o traço da lama em qualquer lugar – lama impregnada, paredes desenhadas, níveis de inundação. A doença que somos, nosso modo de vida não-indígena, somos engolidos por água-e-terra. As águas baixam – mas nunca sem a ameaça de subir novamente a qualquer momento. A lama que tudo recobre nos asfixia. Devolve casas, bairros, fábricas, ateliês, hortas, todas destruídas. O lodo nos gera repulsa, matéria amorfa e não desejada que é o resultado da equação que nunca quisemos encontrar.
Imagem: Eduardo Seidl. Porto Alegre, Brasil. @fototaxia
Desejamos que Gaia faça algo, que consuma esta lama. Que a reabsorva, mas ela é lixo sem categoria, descarte descomunal daquilo que produzimos – e também das nossas vidas feitas em objetos, memórias, máquinas, produtos, bens, conforto. A lama regorgitada por Gaia é matéria desconhecida, artificial, miscigenada, indistinguível. Dependemos de Gaia, de uma transformação intensiva. Desejamos que reaproveite nossas sobras – e que nos devolva algo depois de atravessarmos essa camada espessa. Talvez uma terra seca e firme para pisarmos e habitarmos, uma “terra sem males” – yvy marãe’y – como buscam e nos ensinam os Mbyá guarani. Mas Gaia sabe, apenas teremos direito se bem soubermos andar – ou será navegar – por estas terras.
*Para Hannah e Lucas, e muitos companheires com quem caminhamos nesta terra.
Ref. Isabelle Stengers. No tempo das catástrofes. Resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac & Naify, 2015.
O trânsito, do deslocamento
o privilégio de ir e vir como quem
se separa do que não quer.
Carregar peso,
reafirmar o corpo,
e depois flutar
será uma memória daquela diáspora,
primeira?
Do povo que me formou?
Vai e volta na família
– circula –
uma narrativa sobre sofrimento e
deslocamento e
carregar comida consigo.
Sobrevivência, de algum modo.
Há poucos anos me dei conta
da diáspora desse povo branco
desse povo que perdeu seus rituais
a memória, as formas a textura
a circularidade daquilo que vivia
Não, não é como o povo preto
Mas também é diáspora.
Também doeu.
E leva traumas incutidos
– desaparecidos
sob um orgulho racial.
E desaparecidos no ódio de vencer
um outro povo, subjugado, aterrado,
subsumido, povos minorizados.
Vou e volto, cresço e reapareço nessa trajetória.
Corpo de respiro de arroz e soja,
da planície explorada,
de insumo, de plantation contemporânea.
Atravessada pela exploração
– adendo, sou mulher
– adendo, sou mãe
procuro pontos suaves
como que as matinhas no meio da coxilha
onde o olho descansa e lembra
– como criança
(como olhos d’água)
de um refúgio – qualquer.
O trigo colhido,
penteado no campo amarelo.
O sol se deita, um pouco mais.
((Trabalha aquele que pesca?
No meio da estrada?
Espera a truta crescer
para poder comer ela.
Trabalha aquele que leva,
aquele que rala, aquele silo
aquela palmeira, trabalho
do nada, pinheiro, e pastagem.))
Vou e volto com o corpo encarnado
dos corpos que eu posso ser,
das versões que se desdobram,
do tempo que desliza,
escorre, entre passado e
possível.
Acompanho as sombras,
que vão caindo com o fim do dia
eu também faço sombras,
sou levada,
sorrio,
Quando venho, se choro um pouco
sorrio, quando volto
sei para onde vou.
Achei que era um arquivodesarquivo só de literatura. Só de letras.
Acheiachando no caminho de ir guardar a Hilda com meus olhos de cão ao lado do teu na prateleira. Que eu sabia que tinha. Um espaço digo. E sim, essa proximidade já conhecida entre você e a Hilda. Ao menos o você-autor-daquele-livro e a Hilda dos olhos de cão. E alguns outros mais.
Categoria estranha essa. Esse canto da prateleira.
Cartografias e diagramas: pensando com imagens e com o espaço
ART00030 – Tópico Especial
Carga horária: 30 horas/aula
Créditos: 02 (10 encontros de 3h cada)
Público alvo: Alunos do PPG, aceita alunos ouvintes
Professor(a) responsável: Dra. Cristina Thorstenberg Ribas
Professor Colaborador/PPGAV/Pós-doc PNPD/CAPES (Supervisão: Profa. Dra. Maria Amélia Bulhões)
Terças-feiras, das 9h – 12h
Início das aulas ERE: 22/03 – 11/06
Número de vagas: 25
Local: mconf ou jitsi meet (link a ser informado por e-mail)
Área de Concentração (PV/HTC) – Ambos
Aulas expositivas, seminário de leitura, compartilhamento de produção teórica e artística, escrita e desenho.
Súmula
A disciplina Cartografias e diagramas: pensando com imagens e com o espaço surge a partir do interesse em perceber que a pesquisa em arte contemporânea pode ganhar muitas novas formas de desenvolvimento quando pensada a partir da relação entre as imagens e do espaço, assim como aprende das ‘constelações’ de imagens que podem surgir nos processos de pesquisa, no qual uma certa arqueologia procura inaugurar relações singulares, tal como na obra de Aby Warburg. Neste curso, os conceitos de diagrama e cartografia (Basbaum, Mesquita, Holmes, O’Sullivan), a partir de referenciais contemporâneos diversos, mais internos ou externos às artes, são aliados para produzir processos de pesquisa e processos estéticos.
Vamos estudar a produção de cartografias visuais e diagramas aliadas à pesquisa em artes, orientada tanto para artistas como para historiadores e curadores (de Soto, O’Sullivan, Holmes, Mesquita). O objetivo é pensar não apenas a produção de imagens, as semióticas intrínsecas a elas e sua circulação (Guattari), mas a relação entre as imagens e, com isso, a produção do espaço ele mesmo. Espaço e tempo se articulam na produção de espacialidades virtuais, reais, digitais ou concretas – públicas, partilhadas, comuns, sensíveis, produtivas. Espacialidades e temporalidades não lineares, de maneira que se possa analisar também a produção do olhar ocidental e as cosmologias situadas que vem desestabilizar essa linearidade. Por isso, veremos como a pesquisa em artes pode ressaltar, também, a importância do papel da ‘cognição inventiva’ na constituição dos imaginários (e dos processos de pesquisa) num processo não objetivista mas extremamente rico entre produção de subjetividades e mundos (Kastrup, Stengers).
Diante da saturação das imagens na era digital e de seus limites, poderemos produzir maneiras de reorganizar fluxos e espacialidades, e analisar a circulação e a relação entre imagens, imaginários, espaços, sociabilidades e mundos, de forma que se possa analisar também a relação entre arte e ciência, e a produção inevitável de complexidades nesses processos de análise e produção do conhecimento (Stengers).
Objetivo
Neste curso vamos tomar conhecimento tanto da produção teórica sobre cartografia como a produção de autores e grupos tais como Bureau D’Études, Iconoclasistas, Pablo de Soto, Ricardo Basbaum etc, a partir de autores da filosofia, das artes e da história das artes, da psicologia social, da arquitetura e da geografia crítica. Os conceitos a serem investidos são cartografia subjetiva, cartografia visual, cartografia social e crítica ou contra-cartografia, cartografia como método de pesquisa, diagrama icônico, diagrama funcional, geopsiquiatria, espaço, virtualidade, complexidade, invenção, especulação, produção de conceitos, entre outros.
O conteúdo da disciplina será revertido sobre os problemas da pesquisa em arte e da criação, da visualidade e do imaginário, e demais problemas da estética na contemporaneidade, de maneira que o(a)s aluno(a)s tenham acesso a um conteúdo interdisciplinar que diversifica a pesquisa em artes e a relaciona com outras áreas do conhecimento.
A disciplina tem por objetivo também realizar um percurso conceitual e abrir espaços de intervenção e diálogo com a pesquisa dos(as) mestrando(a)s e doutorando(a)s – que são convidados a partilharem suas pesquisas e participarem do seminário de leituras, auxiliando-os no desenvolvimento de seus trabalhos.
Método de trabalho
No modo ERE as aulas serão realizadas em sala de aula virtual. Manteremos um encontro por semana com duração de 3h. Os encontros em sala de aula virtual serão 10 ao total. As aulas em modo ERE mantém a estratégia de ensino da disciplina presencial: aulas expositivas e dialogadas, realização de seminários por parte da/dos aluna/os apresentando leituras e seus processos de pesquisa, análise e discussão conjunta de estudos de caso, e um trabalho final.
Avaliação
Presença mínima de 75% das aulas. Cada aluna/aluno deverá participar de ao menos um seminário com leitura de texto, partilha do seu processo de pesquisa e um trabalho final de até 12 páginas ao final do semestre.
Conteúdo programático
O cronograma completo de leitura será detalhado na primeira semana de aulas, cujas leituras estão listadas na bibliografia. Aulas expositivas serão preparadas pela professora, relacionando a produção de teórico(a)s, artistas, processos e projetos da arte contemporânea e afins, nos seus cruzamentos e atravessamentos com os estudos da comunicação, a psicologia social e os estudos da cognição e da subjetividade.
Bibliografia (a ser revisada e atualizada)
*Todos os textos serão compartilhados em drive/pdf ou link na internet.
Basbaum, Ricardo. Além da pureza visual. Porto Alegre: Editora Zouk, 2007.
Bureau D’Études, Holmes, Brian and Lomme, Freek. An Atlas of agendas: Mapping the power, mapping the commons. Paris: Onomatopee, 2013.
Kollectiv Orangotango. This is Not an Atlas: A Global collection of counter-cartographies. Verlag/Bielefeld: Transcript / Rosa de Luxemburg Stifund 2018. Disponível em < https://notanatlas.org>
Iconoclasistas (Julia Risler e Pablo Aires). Manual de mapeo colectivo: recursos cartográficos críticos para processos territoriais de criação colaborativa. Buenos Aires: Tinta Limón e os editores, 2013.
Kastrup, Virginia. A invenção de si e do mundo. Uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
Kastrup, V.; Passos, E. Passos. Políticas da cognição, Porto Alegre: Sulina, 2008
Guattari, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990.
Guattari, Félix. O Insconsciente Maquínico. Campinas: Papirus Editora, 1988.
Guattari, Félix. Schizoanalytic Cartographies. London/New York: Bloomsbury, 2013. (versão em espanhol disponível em PDF)
Holmes, Brian, Guattari’s Schizonanalytic Cartographies. In: Continental Drift. Disponível em <http://brianholmes.wordpress.com/2009/02/27/guattaris- schizoanalytic-cartographies> [Acessado em Junho 2013]
Mesquita, André. Mapas dissidentes: contracartografia, poder e resistência. São Paulo: Humanitas, 2019.
Michaud, Philippe-Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento. Belo Horizonte: Contraponto, 2021.
O’Sullivan, S., “On the Diagram (and a Practice of Diagrammatics)”. Em: Situational Diagram, eds. Karin Schneider and Begum Yasar, New York: Dominique Lévy, 2016. ISBN 978-1-944379-09-4
Ribas, Cristina T., “Complexidade, Cartografia de”. Em: Indisciplinar. UFMG, Belo Horizonte, 2017. <http://blog.indisciplinar.com/sobre-a-revista-2/> (artigo) [acessado em 03/05/2017]
Ribas, Cristina T. “Diagramas especulativos a partir da análise institucional, ‘desejos de grupo’ no Brasil em crise”. Em: Revista Modos, no prelo. 2022
Stengers, Isabelle, Power and Invention: Situating Science. University of Minesota Press, Minneapolis, 1997.
Stengers, Isabelle. A invenção das ciências modernas. São Paulo: Ed. 34., 2002
Warburg, Aby. Mnemosyne Atlas. (e textos) https://warburg.library.cornell.edu/panel/b
Vídeos e filmes
Brian Holmes. Guattari’s Cartographies: Territory, Subjectivity, Existence. 2011
Este No Es un Atlas – Un documental sobre contra-cartografías. Kollectiv orangotango. Berlim, 2019 <https://notanatlas.org/videos/>
Cidades Multiespécies (de Soto, et al.) , Apresentação final de disciplina da Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPB, ministrada por Prof. Dr. Pablo de Soto, 15/06/2021
Virginia Kastrup (palestra)
As políticas da cognição e a invenção de um mundo comum e heterogêneo
Organizadoras_
Cristina T. Ribas, Paula Cobo-Guevara e Maria Amélia Bulhões
Apresentação_
Desde a experiência da crítica institucional anglo-saxã, se criaram novos diagramas conceituais para repensar a produção (e as condições) das práticas artísticas contemporâneas, a partir das porosidades e encontros com práticas sociais e de novas concepções espaciais dos anos 60, produzindo, entre elas, um desborde disciplinar. Por sua vez, a análise institucional vai produzir experiências, saberes e práticas singulares, também desde uma perspectiva de crítica radical às instituições, neste caso, “entramadas” nas instituições psiquiátricas, escolares, universitárias, de saúde, etc; nomeando estes desbordamentos e modulações sob o conceito de “transversalidade”. De que forma estas duas trajetórias, sejam elas travessias, navegações ou rastejos de pensamento poderiam abrir-se em afetações (afecções) comuns, atualizando experiências, práticas e saberes? De que forma se criam ferramentas, e estratégias que nos dão acesso ao problema da produção de subjetividade e, por tanto, aos modos de existência que subvertem o regime colonial capitalista, racista, antropo-logo-falo-cêntrico?
Neste dossiê damos espaço a algumas produções artísticas, críticas, narrativas e historiográficas que vem surgindo de um caminho traçado na experimentação tênue entre “instinto e instituição”, como debateram Gilles Deleuze e Félix Guattari, e outros autores que focam no que poderíamos pensar, talvez estranhamente, por destituinte, também para pensarmos uma saúde menor, e junto a ela, uma saúde menor da arte, com a minúsculo. Atentas às novas intervenções (e invenções) institucionais que vem sendo inauguradas e instauradas e às formas de produção social situadas entre os modos da clínica e da cultura convidamos autores para fomentarem esse debate, partilhando seus referenciais e suas ferramentas conceituais, e para compartilharem suas práticas.
Procuramos com esse dossiê reunir a contribuição de pesquisadores, artistas, psicanalistas, psicólogas e psicólogos, profissionais de saúde e mais, investidos nos estudos da subjetividade e em re-situar uma ético-estético-política desses desbordes institucionais. O dossiê Instinto e instituição apresenta artigos que surgem de práticas situadas, a partir da análise institucional, da anti-psiquiatria, da saúde e da saúde mental na América Latina e alhures, de clínicas públicas de psicanálise, de práticas artísticas e clínicas, de clínicas ecosóficas, que, cada uma à sua forma, surgem de uma arte das processualidades, de focos de criatividade mutante, não cafetinada, e das formas insubordinadas, fragmentárias e ao mesmo tempo insurgentes diante dos limites institucionais e das forças normotizantes que se solidificam na atualidade, práticas portanto, decoloniais. Mais do que uma reorganização topográfica, de campos ou áreas do conhecimento, nos motivou reunir aqui produções e pesquisas que podemos agarrar pelo desborde, pela barra (como de uma saia), e, porque não, pelo meio mesmo, como acesso ao campo de forças, problemático e inventivo, dessas experiências. Trabalhamos aqui uma vontade que apreendemos da história da análise institucional no Brasil, uma vontade política de produzir novos problemas, que seja uma vontade de invenção que dê passagem a afetos-matéria, e em movimento – entre espaços, grupalidades, instituições.
O dossiê apresenta artigos e ensaios que surgem de práticas situadas, a partir da análise institucional, da anti-psiquiatria, da saúde e da saúde mental na América Latina e alhures, de clínicas públicas de psicanálise, de práticas artísticas e clínicas, de clínicas ecosóficas, que, cada uma à sua forma, surgem de uma arte das processualidades, de focos de criatividade mutante, não cafetinada, e das formas insubordinadas, fragmentárias e ao mesmo tempo insurgentes diante dos limites institucionais e das forças normotizantes que se solidificam na atualidade, demarcando que são práticas portanto, decoloniais. Mais do que uma reorganização topográfica, de campos ou áreas do conhecimento, nos motivou reunir aqui produções e pesquisas que podemos agarrar pelo desborde, pela barra (como de uma saia), e, porque não, pelo meio mesmo, como acesso ao campo de forças, problemático e inventivo, dessas experiências. Trabalhamos aqui uma vontade que apreendemos da história da análise institucional no Brasil, uma vontade política de produzir novos problemas, que seja uma vontade de invenção que dê passagem a afetos-matéria, e em movimento – entre espaços, grupalidades, instituições.
Este texto faz parte de um dos episódios do podcast Punto Ciego, do MUAC (México), e pode ser escutado aqui https://muac.unam.mx/podcasts/punto-ciego no episódio ‘Maternidades’
É a maternidade obrigatória? Quais são as condições de existência da maternidade? Que formas de significação se produzem entre maternidade e um sistema majoritário de reprodução da vida? E que outras formas de fazer maternidade nos atravessam? Mães brancas mães negras mães indigenas mães trans mães. Uma autora negra, bahiana, assistente social, Carta Akotirene em seu livro “Interseccionalidade” fala que tanto Audre Lorde e como Achile Mbembe analisam que enquanto as mulheres brancas tem medo que seus filhos possam crescer e ser cooptados pelo patriarcado, as mulheres negras temem enterrar seus filhos vitimados pelas necropolíticas que militar e confessionalmente matam e deixam morrer contrariando o discurso cristão elitista-branco de valorização da vida e contra o aborto. Reiteramos: o aborto é um direito reprodutivo. E essa relação truncada com a maternidade é uma encruzilhada teórica da qual não se pode escapar. Amamos a nossos filhes nossas filhas nossos filhos, os que tivemos e os que não tivemos. E aqueles que o estado tirou. E a nós mesmas, também nos cuidamos. Maternagem a-feto: matripotências e outras linhagens bastardas contra o patriarcado duro.
{Versión Espanhol}
¿Es la maternidad obligatoria? ¿Cuáles son las condiciones de existencia de la maternidad? ¿Qué formas de sentido se producen entre la maternidad y un gran sistema de reproducción de la vida? y ¿qué otras formas de hacer maternidad nos atraviesan? Madres blancas madres negras madres indígenas madres trans madres. Una autora bahiana negra, trabajadora social, Carla Akotirene en su libro “Interseccionalidad” dice que tanto audre lorde como achile mbembe analizan que mientras las mujeres blancas tienen miedo de que sus hijos crezcan y sean cooptados por el patriarcado, las mujeres negras temen enterrar a sus hijos victimizados por las necropolíticas que militar y confesionalmente matan y dejan morir contra el discurso cristiano elitista-blanco de valorar la vida y contra el aborto. Reiteramos que el aborto es un derecho reproductivo. Esta relación rota con la maternidad es una encrucijada teórica a la que no se puede escapar. Amamos a nuestros hijes, a nuestras hijas, a nuestros hijos, a los que tuvimos y a los que no. Y los que el estado se llevó. Y nosotras mismas, también nos cuidamos. Maternidades a-feto: matripotencias contra el patriarcado duro.
Quando o cabelo inverte para o outro lado onde não estava eu acordo com as mulheres que não acordam suas filhas corpo contra a gravidade e elas dão um beijo na testa de suas filhas e talvez uma delas seja a enfermeira e outra a cobradora e eu rolo no tapete da sala antes da hora do banho dessa vez sem o segundo tatame embaixo. O tapete é felpudo um pouco gelado umidade de fora rolamos juntas eu e minha filha eu rolo um pouco mais procurando encostar o pedaço da nuca que nunca encosta e de novo vem pra mim quem acorda as filhas das mulheres que não acordam suas filhas?
Construir sua própria vida, construir algo de vivo, não somente com os próximos, com as crianças – seja numa escola ou não – com amigos, com militantes, mas também consigo mesmo, para modificar, por exemplo, sua própria relação com o corpo, com a percepção das coisas.* Um homem escreveu surrupiei a sua percepção para a povoar com meu corpo existência de mulher e outro que disse de uma relacionalidade infinita. Ele, o de antes, pergunta se isso seria como diriam alguns desviar-se das causas revolucionárias mais fundamentais. Preocupação de quem e como as causas urgentes atravessando a escrita de um homem uma mulher se apropria das sensações comuns como emoliente feita de toque e morna ao mesmo tempo em que ela desenvolve maneiras desenhadas na pressa de descascar batatas. Relacionalidade infinita dança improviso mutabilidade modulação.
Uma contagem da vida anonimicamente não sabemos muito bem quem produz os gráficos das vidas anônimas que morrem diante da gente em gráfico morrem diante das mulheres que não acordam suas filhas o meu medo a minha cama por cima de tudo meu sonho por baixo de tudo isso vivemos nas cidades das vidas anônimas e os corpos dos outros são serviços para os nossos. Mas agora as valas de terra solta corpos dos que nunca queremos ver chove e lava os corpos mortos penetráveis superfícies que são fechadas em sistemas de corpos internos neurotizados a doença para dentro. Asfixia aumentada alienação em gráfico especialistas de mortes (homens de gravata).
Posso respirar quando chove muito eu lembro que essa cidade é charco e caminho nas ruas pisando em sementes secas para provocar um craca como aquela do sonho em que a chuva corrompia o cimento duradouro desse prédio onde me penduro como célula macia. Abrir a terra era inevitável eu dizia mas as pilastras estavam seguras o som de cada gota de chuva do lado de fora a chuva desenha um ritual em que o desaguar da nuvem é o lugar de cada morte. Cada morte não posso respirar.
Uma nesga de sol um longo inverno disse outro homem que agora tem medo do fora se encastela para viver depois do inverno. Fecho os olhos e vejo pequenas sementes desperdiçadas nos lençóis freáticos paredes de cimento que secam a terra por dentro uma cova para uma água brotada um teto que pinga também dentro da casa alguma coisa alguma comunidade imaginada de realidade comum de corpos quentes e não dos corpos que vão ou dos corpos que se evitam. Na urgência queríamos uma comunidade de parideiras de mulheres que gozam que abortam e que cuidam. Os filhos doentes do patriarcado são cuidados por quem agora? No abrigo-confinamento a crise dos cuidados a povoar a crise dos cuidados a povoar o invisibilizado em todo e qualquer canto, em toda e qualquer célula doméstica alguns podem mais algumas sofrem mais algumas mães chegam em casa e não podem beijar suas filhas.
Nas costas de mim, nos bolsos do macacão, as cascas de frutas secas nos meus bolsos sun day s as cascas laranja a casa e as cores mornas a luz baixa e aquela pedra esculpida com um nome na lateral da igreja gótica ao mesmo tempo introduzindo o cemitério todo no topo de Glasgow. In the memory of Sundays era um homem ou era um ritual pagão que ocupava ali mesmo do lado da igreja um pedaço de chão terrenal projeção de tempos infinitos. Em casa eu viajo nas paisagens onde olhava para longe procurando quase como se conseguisse perfurar a nuca e expandir espaço sem teto sobre a cabeça onde eu nem sabia que precisaria tanto, agora.
Se eu molhar as cascas secas das frutas com as gotas das chuvas eu vou embora de mim mesma em matéria mágica. Vai embora também um moi idéal e un idéal de moi impressa na tela de projeção virtual procurando olhar sem ser frontal (impossível). Something like that água por tudo água nos meus olhos água por tudo dizem que o vírus habitava as águas sujas antes mesmo de brotar parasita em um pulmão poluído o vírus sem saber esperava uma brecha as condições ambientais um acúmulo de toxinas. Mas estou no lugar que deveria estar anoto coisas do tipo quando há tempo de anotar como mandalas em palavras. Rabiscos de ritual traços cascas.
Choveu tanto. As árvores seguram o limite do lençol freático Domingos un hombre de mucos hablaba por abajo de las sabanas un operario preso na construção do canal por allí húmedo y aun vivo de manos verdes puro limo, algas y hongos el me llama a bajar al canal unos 12 metros abajo de mi ventana. Domingos para ver as formas incompletas de vida e de proteína que cruzam em alta velocidade os subúrbios das águas umedecem a carne da cama o lençol toca por uma fina camada gelada faz uma ponte úmida do meu corpo com o lençol freático.
A Canafístula frondosa me conhece mais que eu habita toda a janela do quarto e carinha minha alma acompanho com ela as cores do dia e ela é um filtro manso das transições dos dias o silencioso canal aterrado entre as ruas que descem do Mont’serrat eu sou a mulher branca do 308 que enumera amorosamente as casas de madeira que existem ainda sobrevivem na vizinhança como hongos coloridos de um outro modo de habitar e os meus vizinhos negros que eu não conheço da história do bairro das calçadas de arenito vermelho que eu queria lamber. Os meus vizinhos das casas de madeira não vão subir para o quinto andar de um prédio de granito marrom que canalizou o lençol Sun days um vôo no espaço aéreo da Canafístula.
Eu tenho outro sonho dessa vez com un hombre de la casa curativa habitava uma casa azul como nas paredes calcadas do Marrocos que nunca fui manchas azules es ahora y no el hombre de mucos que não pode acordar as suas filhas porque algumas delas nem podem acordar (ele está com os ouvidos tapados ele conversa comigo por gestos). O outro está muito ocupado sua vida entre decisões talvez ele leia os gráficos eu espero que ele tenha um tempo entre tantas pessoas que lhe solicitam fecho a tela dos gráficos seguro no colo um bebê com rosto de menino-homem que me pede amamentação como? Interpelada a casa curativa do homem o sonho ainda não é a comunidade de parideiras de paredes calcadas de amoroso sangue.
Eu rolo no solo esticando um último estalo no pescoço desejo sair do sonho vejo algumas plantas aqui em casa e entre as paredes de calcário na umidade as paredes fluxos de sangue fluxos de signo diante da tela evidenciam a vida mais como signo que como vida. Como podem se desfazer de vidas espero desenhando diagramas transformativos olhando uma psyché corrompida remendos de realidade os filhos adultos que não abraçaram seus pais. A minha filha a esperar no banheiro cerrado de névoa amplio o peito para pegar um pouco mais de ar e ele está cheio molhado de água o dia acaba abraço afago quente e é noite de novo debaixo da Canafístula.
* Sob uma raíz de uma árvore Canafístula (Peltophorum dubium) ou Ibirá-pitá (Paraguai e na Argentina). Árvore da família das Fabaceae.
**Escritor homem surrupiado: Félix Guattari, em Revolução Molecular.
Estéticas do Aborto. A presença do lenço verde na luta pela descriminalização
Resumo: O artigo faz uma primeira exposição de uma pesquisa em processo que procura analisar e mobilizar as estéticas do aborto (os modos expressivos que surgem ao redor da luta pela legalização e contra a criminalização e que relatam experiências de aborto). No presente apresento artigo a “passagem” do lenço branco das Madres de la Plaza de Maio, que se torna lenço verde na luta pela legalização, primeiramente na Argentina e depois internacionalmente. A pesquisa analisa a violência heteropatriarcal em relação aos direitos reprodutivos como um todo e percebe a emergência do signo verde no fluxo consciente/inconsciente [visível/invisível; sabido/secreto; público/não publicizado], tomando o espaço público, apresentando a transversalidade dessa demanda entre os movimentos feministas e a multiplicitária invenção de signos, corpos, eventos e mais.
Abstract: The article makes a first presentation of an on going research that seeks to analyze and mobilize the aesthetics of abortion (the expressive ways that arise around abortion experiences and struggle for legalization and against criminalization of abortion). In this article I present the “passage” of the white handkerchief of the Madres de la Plaza de Maio, becoming the green scarf in the struggle for legalization, first in Argentina and then internationally. The research analyzes heteropatriarchal violence in relation to reproductive rights as a whole and perceives the emergence of the green sign in the conscious / unconscious flow, taking over the public space, presenting the transversality of this demand between feminist movements and the multiplicity of invention of signs, bodies, events and more.
“Educação sexual para decidir, conceptivos para não abortar, aborto legal para não morrer.” Luta internacional pela legalização do Aborto
Diversas manifestações e expressões de resistência a partir de movimentos feministas mais ou menos organizados tem centralizado na descriminalização do aborto uma de suas bandeiras mais fortes. O ‘pañuelo’ verde (lenço verde) tem alcançado ampla disseminação e, junto da pauta que ele carrega, o símbolo evidencia que as semióticas dos movimentos atravessam os tempos, reunindo momentos históricos distintos, e também são uma maneira possível de pensar contemporaneamente a estética. Refiro-me aqui a uma estética das expressões, das formas de expressão, quebrando dicotomias entre signo, obra e corpo, entre individualidade e coletividade. O contexto de produção que assinalo aqui se situa, portanto, na expressão estética das multiplicidades feministas. Percebo que as formas de expressão que surgem ao redor das defesa pela legalização do aborto povoam uma multiplicidade: vidas, formas de relacionar-se, direitos reprodutivos, corpas dissidentes. Neste contexto são fomentados também espaços que borram ou atritam estéticas circunscritas aos espaços de enunciação da arte.
Estéticas do aborto é uma pesquisa em processo de manifestações e expressões estéticas que relatam experiências de aborto e demandam sua legalização, analisando a violência heteropatriarcal em relação aos direitos reprodutivos como um todo (no fluxo consciente/inconsciente), e a transversalidade dessa demanda entre os movimentos feministas. Estéticas do aborto é, inevitavelmente, também um dispositivo de escuta. É crucial para essa pesquisa entender de que forma as novas constituições políticas e o trabalho turbilhonar dos signos no movimento feminista pró-legalização abarcam a estatística que marca o aborto: mães (2/3 dos casos), mulheres indígenas e mulheres negras são as que mais abortam no Brasil. Portanto é pertinente perguntar a partir de que corpos vemos a luta contra a criminalização e pró-legalização, e analisar se as expressões estéticas das lutas pró-aborto estão dando conta (também) de representar essas vidas, algo que não darei conta neste texto.
A luta contra a criminalização tem surgido com mais força em meio às mobilizações e movimentos feministas nos últimos dez anos na América Latina (escopo que consigo tentar dar conta com esse texto). A luta pela descriminalização é também a luta por direitos reprodutivos, uma questão de saúde pública. A aparição do verde como cor significativa dessa luta acontece em 2003, no Encuentro Nacional de Mujeres en Rosario (Argentina), segundo a pesquisadora Carolina Muzi (2019). Neste momento a cor lilás já marcava o movimento feminista internacional, mas a luta contra a criminalização ainda não tinha uma identidade específica. O verde se tornará alguns anos depois o lenço “verde-aborto” (em 2017), aprendendo da luta das Mães e Avós da Praça de Maio, que desde 1977 reclamam a desaparição de seus filhos (e netos) em meio à ditadura da Argentina. Elas tem o lenço branco como signo mais unitário da sua luta. “Somos madres de 30.000 (desaparecidos)”, elas dizem. O lenço branco vem do “pañal”, literalmente fralda em castelhano, que passa a ocupar as cabeças, primeiro com o bordado do nome dos filhos desaparecidos, a data, e sua ocupação. Ana Longoni escreve: “E é, como a fralda, recipiente de fluidos corporais íntimos, que se deseja conter, esconder // revisar ou esconder (lágrimas, suor e muco)”. O lenço branco, como marca filogenética, invoca os filhos arrancados pelo estado. Por outro lado, o movimento conservador demanda que deve haver filhos que sejam forçados a nascer. A “socialização da maternidade” nas ruas de trinta anos atrás não é, contudo, para as Madres e Abuelas, a maternidade compulsória, é a socialização sobre a condição colocada pelo opressor – como aquele que impõe o direito de quem pode morrer e quem pode viver. O que deve estar em jogo, antes, é o direito a decidir.
Feminismos Bastardos. Feminismos Tardio. Abortar o Estado heteropatriarcal.
Eu sou a puta que pariu.
Eu sou a puta aborteira que pariu e que sabe muito bem cuidar, e também negar cuidado.
Eu sou a puta que pariu corpos livres.
E como aprendi com Ni Una Menos da Argentina. Eles são os filhos doentes do patriarcado. Mal paridos pelo patriarcado.
Imagine que este texto seja uma colagem.
De muitas vozes e muitas vidas. Algumas subsumidas, algumas achatadas. Algumas que se associam a outras que se pronunciam. Este texto é uma colagem. Aliás, leia esse texto com os contratempos e os infratempos e as síncopes dos tempos de um processo não linear, caótico e assustador da instituição da merda patriarcal. Heterocapitalista, machista, racista e misógina. Ou, em vez de merda, podemos dizer instituição do ‘pão com leite condensado’ heteropatriarcal. Afinal, a mais recente instituição assim o é também. A nova versão de ‘pão com leite condensado’ (pra quem não sabe, um bando de homens se masturbando ao redor de um punhado de pães…) segue o golpe que retirou Dilma do poder, e segue o golpe a cada dia.
Esse texto se escreve com os tempos de uma maternidade, de alguns abortos, e de estupros, estupros coletivos inclusive, de feminicídios e de apologias à violência de inúmeras formas, e de violência real, e de… muitos protestos, tuítes, hashtags, tomadas das ruas, rituais afro-ameríndios, peitos de fora… choros, novos enunciados. Uma eleição. E um golpe, já mencionado. E ah! Uma prisão. Exemplar. Histórica. Ideológica. Polícia política. #Elenão #Elesnunca. O tempo da escrita é um tempo que pode coincidir com o seu. Tempos que podem causar (n)uma mulher. E uma mulher que lê outras mulheres. Mulheres puta, puta-mulheres. E que conversa com elas partejando transfeminismos. Partejando feminismos transversais. Texto que vem querendo arrebentar a (aparente) indeterminação e a sexualidade imposta a um feminismo. Feminismo(s) que tem que ser, antes, pelo contrário, não branco, não classista, não heterossexual. Texto de mulheres-trans e transvestigêneres (como diz Indianare Siqueira), que amamentam suas filhas, que acolhem suas companheiras, e que abortam com elas. Abortam também o estado em seu corpo. De seu corpo. Abortam para parir estados pretos. Novas sementes, sementes de Marielle.
Imagine que há homens ao redor. Claro. Você mesmo leitor talvez seja homem. Evidente que há homens ao redor. E eles estão representados, de novo, lá no lugar que nos é tomado, de novo, como violação da realidade e da política mesma, e, sobretudo, como reafirmação dessa distância, dessa alienação. Eles tornam-se representantes. Mas do quê? Política, como eles reiteram, não é lugar para mulheres. Nem para negras, nem para pobres. É a partir do governo desses homens – e da impossibilidade que habitemos com eles espaços de representatividade, e espaços comuns, que esse texto é escrito.
Em 2018, nas campanhas para as candidaturas políticas, o corpo do outro se tornou o corpo do diálogo impossível onde morriam meu afeto e mesmo minha capacidade de escuta (aliás, o que é a escuta no sistema do não diálogo?). Antes de reforçar o outro como já intocável, antes de querer endereçar aquele que já se cristalizou lá naquela forma, que é o corpo daquele que se constitui ao modo semiotizado pelo conservadorismo fascistoide (e há mesmo fascistas autointitulados!), eu queria poder falar a partir de modos em passagem, de modulações, de alguma coisa que se mistura, e se arranca, para produzir a si, fora de certas capturas.(…)