Canto de prateleira

Achei que era um arquivodesarquivo só de literatura. Só de letras.

Acheiachando no caminho de ir guardar a Hilda com meus olhos de cão ao lado do teu na prateleira. Que eu sabia que tinha. Um espaço digo. E sim, essa proximidade já conhecida entre você e a Hilda. Ao menos o você-autor-daquele-livro e a Hilda dos olhos de cão. E alguns outros mais.

Categoria estranha essa. Esse canto da prateleira.

Fumar um cigarro

Fumaça. O cigarro começa a fumar a si mesmo. Enquanto eu entro numa deriva mental e prazeiroza sobre o morrendo que ocupa esse cigarro em mim. O que acontece com o fumar? Com a contagem do tempo. Com a contagem dos cigarros. Essa contagem de hora definida. Essa performance pra mim mesma. A factualidade da vida. A evanescência.

Instrução da ação: fumar um cigarro para cada ação de cuidado reprodutivo. Fumar um cigarro ao fazer o café da manhã da filha. Fumar um cigarro ao levá-la na escola. Fumar um cigarro ao responder à mensagens para uma pessoa amiga. Fumar um cigarro quando tiver me arrumando para trabalhar. Fumar um cigarro quando colocar as roupas na máquina de lavar. Fumar um cigarro quando fizer a lista de compras. …

Cada dia ensaio um novo cinzeiro. Hoje usei o papel de guardanapo ou de secar as mãos de um banheiro que não lembro qual foi. O cigarro que fumara a si mesmo eu não apaguei mas deixei ali. Agora fuma o papel.
Tem o fazer nada do cigarro.

(2015)