Estéticas do Aborto

Estéticas do Aborto. A presença do lenço verde na luta pela descriminalização

Resumo: O artigo faz uma primeira exposição de uma pesquisa em processo que procura analisar e mobilizar as estéticas do aborto (os modos expressivos que surgem ao redor da luta pela legalização e contra a criminalização e que relatam experiências de aborto). No presente apresento artigo a “passagem” do lenço branco das Madres de la Plaza de Maio, que se torna lenço verde na luta pela legalização, primeiramente na Argentina e depois internacionalmente. A pesquisa analisa a violência heteropatriarcal em relação aos direitos reprodutivos como um todo e percebe a emergência do signo verde no fluxo consciente/inconsciente [visível/invisível; sabido/secreto; público/não publicizado], tomando o espaço público, apresentando a transversalidade dessa demanda entre os movimentos feministas e a multiplicitária invenção de signos, corpos, eventos e mais.

Abstract: The article makes a first presentation of an on going research that seeks to analyze and mobilize the aesthetics of abortion (the expressive ways that arise around abortion experiences and struggle for legalization and against criminalization of abortion). In this article I present the “passage” of the white handkerchief of the Madres de la Plaza de Maio, becoming the green scarf in the struggle for legalization, first in Argentina and then internationally. The research analyzes heteropatriarchal violence in relation to reproductive rights as a whole and perceives the emergence of the green sign in the conscious / unconscious flow, taking over the public space, presenting the transversality of this demand between feminist movements and the multiplicity of invention of signs, bodies, events and more.

“Educação sexual para decidir, conceptivos para não abortar, aborto legal para não morrer.” Luta internacional pela legalização do Aborto

Diversas manifestações e expressões de resistência a partir de movimentos feministas mais ou menos organizados tem centralizado na descriminalização do aborto uma de suas bandeiras mais fortes. O ‘pañuelo’ verde (lenço verde) tem alcançado ampla disseminação e, junto da pauta que ele carrega, o símbolo evidencia que as semióticas dos movimentos atravessam os tempos, reunindo momentos históricos distintos, e também são uma maneira possível de pensar contemporaneamente a estética. Refiro-me aqui a uma estética das expressões, das formas de expressão, quebrando dicotomias entre signo, obra e corpo, entre individualidade e coletividade. O contexto de produção que assinalo aqui se situa, portanto, na expressão estética das multiplicidades feministas. Percebo que as formas de expressão que surgem ao redor das defesa pela legalização do aborto povoam uma multiplicidade: vidas, formas de relacionar-se, direitos reprodutivos, corpas dissidentes. Neste contexto são fomentados também espaços que borram ou atritam estéticas circunscritas aos espaços de enunciação da arte.

Estéticas do aborto é uma pesquisa em processo de manifestações e expressões estéticas que relatam experiências de aborto e demandam sua legalização, analisando a violência heteropatriarcal em relação aos direitos reprodutivos como um todo (no fluxo consciente/inconsciente), e a transversalidade dessa demanda entre os movimentos feministas. Estéticas do aborto é, inevitavelmente, também um dispositivo de escuta. É crucial para essa pesquisa entender de que forma as novas constituições políticas e o trabalho turbilhonar dos signos no movimento feminista pró-legalização abarcam a estatística que marca o aborto: mães (2/3 dos casos), mulheres indígenas e mulheres negras são as que mais abortam no Brasil. Portanto é pertinente perguntar a partir de que corpos vemos a luta contra a criminalização e pró-legalização, e analisar se as expressões estéticas das lutas pró-aborto estão dando conta (também) de representar essas vidas, algo que não darei conta neste texto.

A luta contra a criminalização tem surgido com mais força em meio às mobilizações e movimentos feministas nos últimos dez anos na América Latina (escopo que consigo tentar dar conta com esse texto). A luta pela descriminalização é também a luta por direitos reprodutivos, uma questão de saúde pública. A aparição do verde como cor significativa dessa luta acontece em 2003, no Encuentro Nacional de Mujeres en Rosario (Argentina), segundo a pesquisadora Carolina Muzi (2019). Neste momento a cor lilás já marcava o movimento feminista internacional, mas a luta contra a criminalização ainda não tinha uma identidade específica. O verde se tornará alguns anos depois o lenço “verde-aborto” (em 2017), aprendendo da luta das Mães e Avós da Praça de Maio, que desde 1977 reclamam a desaparição de seus filhos (e netos) em meio à ditadura da Argentina. Elas tem o lenço branco como signo mais unitário da sua luta. “Somos madres de 30.000 (desaparecidos)”, elas dizem. O lenço branco vem do “pañal”, literalmente fralda em castelhano, que passa a ocupar as cabeças, primeiro com o bordado do nome dos filhos desaparecidos, a data, e sua ocupação. Ana Longoni escreve: “E é, como a fralda, recipiente de fluidos corporais íntimos, que se deseja conter, esconder // revisar ou esconder (lágrimas, suor e muco)”. O lenço branco, como marca filogenética, invoca os filhos arrancados pelo estado. Por outro lado, o movimento conservador demanda que deve haver filhos que sejam forçados a nascer. A “socialização da maternidade” nas ruas de trinta anos atrás não é, contudo, para as Madres e Abuelas, a maternidade compulsória, é a socialização sobre a condição colocada pelo opressor – como aquele que impõe o direito de quem pode morrer e quem pode viver. O que deve estar em jogo, antes, é o direito a decidir.

(texto completo Esteticas do aborto_bienal 3_2020)

Feminismos Bastardos. Feminismos Tardios

Feminismos Bastardos. Feminismos Tardio. Abortar o Estado heteropatriarcal.

Eu sou a puta que pariu.

Eu sou a puta aborteira que pariu e que sabe muito bem cuidar, e também negar cuidado.

Eu sou a puta que pariu corpos livres.

E como aprendi com Ni Una Menos da Argentina. Eles são os filhos doentes do patriarcado. Mal paridos pelo patriarcado.

Imagine que este texto seja uma colagem.

De muitas vozes e muitas vidas. Algumas subsumidas, algumas achatadas. Algumas que se associam a outras que se pronunciam. Este texto é uma colagem. Aliás, leia esse texto com os contratempos e os infratempos e as síncopes dos tempos de um processo não linear, caótico e assustador da instituição da merda patriarcal. Heterocapitalista, machista, racista e misógina. Ou, em vez de merda, podemos dizer instituição do ‘pão com leite condensado’ heteropatriarcal. Afinal, a mais recente instituição assim o é também. A nova versão de ‘pão com leite condensado’ (pra quem não sabe, um bando de homens se masturbando ao redor de um punhado de pães…) segue o golpe que retirou Dilma do poder, e segue o golpe a cada dia.

Esse texto se escreve com os tempos de uma maternidade, de alguns abortos, e de estupros, estupros coletivos inclusive, de feminicídios e de apologias à violência de inúmeras formas, e de violência real, e de… muitos protestos, tuítes, hashtags, tomadas das ruas, rituais afro-ameríndios, peitos de fora… choros, novos enunciados. Uma eleição. E um golpe, já mencionado. E ah! Uma prisão. Exemplar. Histórica. Ideológica. Polícia política. #Elenão #Elesnunca. O tempo da escrita é um tempo que pode coincidir com o seu. Tempos que podem causar (n)uma mulher. E uma mulher que lê outras mulheres. Mulheres puta, puta-mulheres. E que conversa com elas partejando transfeminismos. Partejando feminismos transversais. Texto que vem querendo arrebentar a (aparente) indeterminação e a sexualidade imposta a um feminismo. Feminismo(s) que tem que ser, antes, pelo contrário, não branco, não classista, não heterossexual. Texto de mulheres-trans e transvestigêneres (como diz Indianare Siqueira), que amamentam suas filhas, que acolhem suas companheiras, e que abortam com elas. Abortam também o estado em seu corpo. De seu corpo. Abortam para parir estados pretos. Novas sementes, sementes de Marielle.

Imagine que há homens ao redor. Claro. Você mesmo leitor talvez seja homem. Evidente que há homens ao redor. E eles estão representados, de novo, lá no lugar que nos é tomado, de novo, como violação da realidade e da política mesma, e, sobretudo, como reafirmação dessa distância, dessa alienação. Eles tornam-se representantes. Mas do quê? Política, como eles reiteram, não é lugar para mulheres. Nem para negras, nem para pobres. É a partir do governo desses homens – e da impossibilidade que habitemos com eles espaços de representatividade, e espaços comuns, que esse texto é escrito.

Em 2018, nas campanhas para as candidaturas políticas, o corpo do outro se tornou o corpo do diálogo impossível onde morriam meu afeto e mesmo minha capacidade de escuta (aliás, o que é a escuta no sistema do não diálogo?). Antes de reforçar o outro como já intocável, antes de querer endereçar aquele que já se cristalizou naquela forma, que é o corpo daquele que se constitui ao modo semiotizado pelo conservadorismo fascistoide (e há mesmo fascistas autointitulados!), eu queria poder falar a partir de modos em passagem, de modulações, de alguma coisa que se mistura, e se arranca, para produzir a si, fora de certas capturas.(…)

(texto completo aqui feminismos bastardos-c ribas_def)