Camuflagem

Camuflagem:

Reli um pedaço do Jacques Derrida:

(…) gênero daqueles que têm lugar, por natureza e por educação. Vós sois, pois, ao mesmo tempo filósofos e políticos. (…) estratégia (…) de Sócrates (…) desnorteante (…) enlouquecedora (…) simula colocar-se entre aqueles que simulam (…) pertencer ao genos daqueles cujo genos consiste em simular (…) a pertinência a um lugar e a uma comunidade (…)

Na atualidade, artistas não exatamente se caracterizam estritamente enquanto tais. Suas ações fazem migrar entre si fatos estéticos da crítica à política, desenvolvendo aprendizagens, tornando-se organizadores, educadores, gestores, historiadores, mediadores, entre outros. Novos corpos surgem nesses agenciamentos. Eventos recentes no terreno do Brasil expõem a constituição de uma especificidade na forma de “esferas públicas” temporárias e fragmentárias, sem esquecer que se tratam de proposições com especialidades próprias. Importam nas “esferas públicas” as intensas trocas sociais instigadas entre participantes não identificados estritamente a um campo ou circuito comum de produção cultural, mas a ele associados pela via direta das práticas, que hoje se abrem entre artísticas, comunicativas e expressivas, para desenvolverem problemáticas sociais vividas por todos. A esfera pública se inscreve, necessariamente, em um “onde”, como questão.

Ações neste “onde”, que não está dado a priori, parecem produzir corpos diversos (mais que humanos). Se tornam, é possível, elementos conectivos de um grande dispositivo novo, que converge ou diverge de um território em constituição: a cidade. Analisando ações em conjunto, observamos a diversidade das práticas e o corpo de uma coisa ainda disforme. Assumem existências sem finalidade dura. Outras práticas, porém, clamam direitos. Pensam essa cidade como território produtivo, lugar de enunciação, emergência do protesto. Nela tornam explícita a realização da vida. A cidade como território produtivo clama um posicionamento, mas qual será o corpo que nela atua?

Há algum tempo me dedico a produzir formas de fazer pensar e des/entender as motivações pelas quais artistas e produtores culturais, nos anos mais recentes, se dirigem a algo que cambia e cambia de nome, mas que constantemente se reinscreve como “cidade”. Nela(s), pela promoção de esferas públicas, ações entre pares e des-pares, provocam parcerias e desencontros, sustos e atropelos, coadjuvam uma série de expressividades, comunicações e intrusões. Nestas composições, há mediações e capturas. Nalgumas situações, nada melhor do que ser estrangeiro e brincar nas cidades desconhecidas para deflorá-las. Noutras, não é possível, e não se pode atropelá-las. Em alguns territórios não há sempre becos. Não há esquinas possíveis. Não há possibilidade sequer de escuta. Nada se captura. Em outros lugares, ações provocam alardes. São produzidas como em territórios neutros. São espetáculos desejados com promessas de sucesso. Mas, causam vertigem?

Interessa pensar esse território descontrolado para autorizar-se, talvez, a uma camuflagem. Estratégia (…) enlouquecedora. Perpassamos o risco. Não pode se tratar aqui de comercializá-las. Não podem ser nem turísticas, nem históricas, cidades inteiras. Maré e Alagados, territórios contextuais. Não se pode pensar quantos isso ou aquilo. Não se pode.

Ao mesmo tempo em que eventos no Brasil têm promovido o uso de “espaços públicos”, acompanhados de pensamentos teóricos que ancoram criticamente (em termos de linguagem) e afirmações (conquistas políticas), aqui de fato caímos na cidade do desmedido. Com isso, gostaria de suspender a certeza de que ‘sabemos o que estamos fazendo’ (discursos do empreendedorismo) e chamar para a uma análise atenta das possibilidades políticas dessas cooperações. Nem nítidas, nem verdade. Incitação de nascimentos, de coisas disformes informadas pelo protesto, que não podem se esquecer da presença política de corpos, em que se pergunta: qual a disponibilidade desses novos, outros, “corpo” e “cidade”?

Publicado no Caderno Provocações / 2010 / CorpoCidade, UFBA, Salvador

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