Meu nome é Cristina Ribas. Eu atuo como artista (em uma produção autoral e também em grupo) e como pesquisadora, e também trabalho junto com uma Arquivista, No Arquivo de emergência – que, pode-se pensar, se aproxima das formas de curadoria contemporâneas. Mesmo com isto, para mim é uma situação bastante nova estar numa mesa sobre curadoria, especialmente porque eu não me dediquei até hoje a investigar o que é curadoria. Concluí o mestrado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), na linha de Processos artísticos (para artistas), mas escrevi sobre trabalhar neste arquivo. Não escrevi sobre o meu trabalho de arte, resolvi me “deslocar” ou “suspender” a análise de um processo criativo pessoal para observar criticamente o que é dedicar-se à produção do outro, que é o trabalho que o Arquivo realiza: criar uma situação material e relacional para conectar eventos em arte contemporânea brasileira.
Então eu me envolvo desde 2005 com este trabalho, que ainda está em processo e tende “ao infinito”, ou enquanto ainda reverberarem as ações às quais se dedica. A partir do enfrentamento de sair da análise de uma produção autoral e encontrar o trabalho de um outro me pergunto: que outro é?; que tipo de trabalho esse outro faz? Ao trabalhar no Arquivo, na pesquisa, precisamos sair da zona muitas vezes confortável da criação autoral e deslocar-se, da mesma forma que a ambição do artista pode fazê-lo buscar o espaço público (…) então com o trabalho do Arquivo de emergência existe um certo esforço para entender o que é lidar com a produção do outro e produzir algo a partir daí, ou seja, um saber transmissível a partir dos eventos, dos acontecimentos, das obras de arte e de suas inteligências – o arquivo propriamente dito. [1] Esse é um exercício que o arquivo pretende, em relação a outras produções de arte, e acredito que isto se aproxima de um procedimento de curadoria.
O que eu trouxe para falar hoje é motivado não exatamente por isto, arquivo-curadoria, mas por um encontro que eu tenho com alguns autores que me ajudam a preparar um terreno para pensar o acontecimento da arte e as formas de cooperação dos agentes neste campo, em relação com a sociedade. E ainda, me ajuda a conceber um “fora do eixo” subjetivo, como estado ou como condição do sujeito. Walter Benjamin, no início do século passado fala do “autor como produtor”. Ele provoca esse deslocamento, nos trazendo um desejo. Benjamin pensava tanto que o que ele pensou faz sentido até hoje (…). Naquela época, se eu não me engano, ele trabalhava como jornalista; ele escrevia muito porém se sentia um pouco distante dos movimentos que o mobilizavam. Ele fez uma proposta: de que o intelectual saísse da sua posição de intelectual e se aliasse aos operários, digamos, se aproximasse dos operários, para tentar entender as condições produtivas, a revolução industrial, a má remuneração dos operários – que eram a base de um sistema econômico pautado na mais valia. Aproximando-se, poderia tentar entender as questões próprias do operariado, qual sua luta política. Anos depois Antonio Negri, militante do movimento dos operários na Itália vai falar: “olha só: se a gente quiser ficar do lado dos operários, se continuarmos chamando-os de operários, a gente nunca vai distinguir as classes sociais”. Ele propôs: “chega desse negócio de operário, a gente tem que olhar para uma capacidade que está no operário, uma capacidade que não está só no operário, que está no intelectual também.” [3] Reforço: a reflexão serve em parte para mapear e constituir um terreno de atuação para o campo da arte, ajudando a elaborar a exposição das condições de realização, acontecimento e atravessamento das práticas da arte. Negri afirma que se olharmos para o operário apenas enquanto operário – e isto não significa abandonar sua realidade e suas questões específicas – vamos continuar separando a sociedade: a gente precisa olhar a sociedade. E olhar a sociedade pode compreender reunir os saberes, saberes instituídos e saberes subalternos ou alternativos. Se a filosofia política, por sua vez, elabora o campo das relações humanas e sociais, não significa que ela deva esgotar uma elaboração sobre o acontecimento da arte, e é neste momento (imanente, simultâneo) que o próprio campo ou circuito da arte emerge na elaboração da especificidade da arte, naquilo que ela se conecta e se diferencia de outras práticas sociais. Nas minhas leituras, em especial Paolo Virno é um autor que dá as bases para seguir esta apresentação. [4] A partir de Hanna Arendt, tomei conhecimento deste conceito de “esfera pública” que é desenvolvido por Virno. Ela nos leva à Grécia para entender o que era a esfera pública, que a princípio era uma esfera só dos homens, um espaço de argumentação e, sobretudo, não violenta, e por isto, política. Na constituição da esfera pública, que é o exercício mesmo da democracia, a força física ou a violência brutal não servem. Serve a palavra, serve a capacidade argumentativa. A base da esfera pública é, portanto, o que se chama “intelecto em geral”, e é o intelecto que hoje, especialmente com as proposições em relação ao Estado (poder de governo), constitui um espaço comum, pode-se por isto falar na “esfera pública do intelecto” como algo que excede o estado. E esta é sua potência. E a capacidade argumentativa – voltamos um pouco a Negri – é também uma capacidade criativa, que está em cada um de nós, independente do cara ser intelectual, operário, (…) e por extensão artista, curador, crítico, etc. (Não há tempo aqui, mas acho importante pontuar que estas características são o que constituem o chamado “trabalho imaterial” que se funde, para estes autores, na sua forma de acontecimento, com a virtuose artística.)
Trago questões que me inquietam bastante, que surgem na minha experiência e que se tornam inclusive mais claras junto a estes caras. Tenho vontade de falar junto com eles, e não falar da teoria, falar do escrito apenas. [3] Então, de que maneira e por que construímos parcerias, associações, instituições, curadorias? (…) Pensando aquele deslocamento que Negri propõe, e pensando aquela capacidade argumentativa, crítica, criativa que Virno também expõe, gostaria que observássemos, assim como se observa muitas vezes a prática de artista naquilo que a constitui especificamente, qual é a “capacidade” da curadoria. Tendo elaborado esta questão até o momento, penso que é uma capacidade de consignar. Consignar é colocar duas coisas próximas, possibilitar encontrar um signo singular a elas – e isso também pode ser pensado numa anti-curadoria.
O grupo norte-americano Art & Language organizou um arquivo super interessante, que está hoje on line [5]. O arquivo começou com uma produção de “anotações” de termos, ou terminologias, e suas definições (um termo pode ter mais de uma definição!) com uma infinidade de conceitos que serão diretamente ou não tomados em partido com o acontecimento da arte. E a gente pode colocar dois termos um ao lado do outro, aí eles criam três simbolozinhos para consigná-los: capacidade de associação dos termos por conjunção ou implicação [] ou conjunção ampla [&], compatibilidade [+], incompatibilidade [-], ou incapacidade brutal de produzir relação entre os termos [T] ou um aspecto transformacional entre eles. Me parece que consignar depende de uma capacidade criativa e, se voltarmos à Bienal de São Paulo de 2008, era muito o que os curadores queriam – atiçar a montagem, a leitura crítica e dialógica das obras (mesmo que pouquíssimas obras deixassem espaço de resposta).
É interessante observar que a capacidade criativa e cognitiva necessária para o acontecimento da obra talvez seja a mesma que constitui a esfera pública. Neste sentido se pode pensar a liberdade associativa e a possibilidade de redes de cooperação. Estes autores se preocupam por falar disto na atualidade porque em parte a sociedade ocidental produz monstros, ou estruturas de governo, de guerra, de controle que sobressignificam desde as práticas individualmente (o que faz o artista ser um artista? o que faz um curador ser um curador? o que faz um historiador ser um historiador?) e também as instituições e as formalizações destas cooperações.
Me interessa expor que às vezes (e isto se confere muito nas relações dadas na atualidade do capitalismo) as capacidades criativas e as formas de cooperação quando entram num certo tipo de regime ou de sistema elas somem, elas perdem o valor. No caso da arte, a experiência sensível enquanto tal acaba sendo qualificada, e acaba sendo traduzida para dentro de uma experiência que se torna sim uma experiência de consumo, uma experiência de poder, econômica. O que me preocupa é como a gente mantém a vitalidade das nossas relações junto, ou por fora, ou aliado, ou numa tangente, contando com a presença do sistema capitalista. Por isto, “fora do eixo” como condição subjetiva de busca de produção de novas relações desse sujeito que já tem uma capacidade criativa, cognitiva é, talvez antes um deslocamento subjetivo instituído, não como resistência a um sistema outro ao qual seria alternativo, nem como cooptação a algo maior, mas como uma forma de ser, que se afirma enquanto tal.
Agora mais duas últimas observações sobre o sistema capitalista: (1) que o capitalismo é uma forma de relação, ou seja, o capitalismo ele não está aí enquanto tal, não sabemos até que ponto ele é “estável”, pode derruir visto que tem certa fragilidade, bem por isto me parece que se pode provocar intervenções nele; (2) será mais rentável dentro deste sistema, será mais sagaz, aquele que for mais desterritorializado e aquele que for mais dinâmico. Ambas as definições são de Negri e Lazzarato. E se a gente pensar, hoje em dia, são duas capacidades que muitos requer aos artistas, quando eles viajam em programas de residência, quando têm que produzir relações com o estrangeiro, capacidade de chegar lá e se sentir outro, apreender e dialogar (…).
A aparente impossibilidade de estar por fora desse sistema econômico me parece a mesma conexão que temos com um circuito ou sistema de arte institucionalizado, onde as funções atribuídas a cada ator são bem determinadas: curador, artista, colecionador, museólogo, etc. Contudo me parece que este evento testa a possibilidade de produzir movimento, de produção em cooperação com sistemas e não exatamente por fora disso. Produzir interferências, cortes, rupturas subjetivas e eventos abruptos, que podem ser propositivos, que podem modificar as funções deste sistema, constituem uma esfera pública, nem tanto espacial (apegada a um território geográfico), e neste sentido ela não deve estar obrigatoriamente em espaço público, ou no espaço da rua, ela se constitui num espaço que seja comum, num espaço que haja minimamente várias pessoas, ou duas pessoas ou às vezes nenhuma (?) disposta a trocar, argumentar, construir; enfim, digo isto para gente se colocar a pensar. Nossa grande questão parece ser criar nessa esfera. Então, só pra gente pensar, o que a gente quer com as relações que propõe?, com aquelas relações de consignação?, transpondo as ferramentas do Art & Language, e repensar até que ponto a gente precisa e de que forma é estratégico ou é inteligente se configurar (que não é só se denominar enquanto tal) artista, crítico, curador (…) São questões para mim não resolvidas e que só existem no exercício de uma esfera pública de liberdade. Para finalizar minha fala quero ler um pedacinho bem pequenininho de Hanna Arendt: ela investiga a ação, e o drama, no teatro, que se aproxima do exercício da esfera pública. Sobre a ação, há o escrito: “pois a ação é o que estabelece o grande paradoxo (…) o conceito de liberdade foi criado ao mesmo tempo e não antes que o homem”.
NOTAS
[1] O Arquivo de emergência agrupa material de “eventos de ruptura” da produção brasileira em arte desde meados de 1998. O Arquivo inventaria uma série de conceitos fundamentais para sua compreensão. É exposto em instituições de arte ou não, realiza parcerias com projetos de outros artistas, coletivos e iniciativas autônomas. Consulte a página para saber a localização do Arquivo de emergência: HTTP://arquivodeemergencia.wordpress.com.
[2] NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre o Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
[3] Gosto muito de pensar em um saber que está disponível, e assim o livro me parece – só para não perder a linha (da leitura), o livro está no mundo, e me fascina que o livro escrito, o mesmo ao qual eu cheguei, também pode ser acessado por alguém do outro lado do mundo. (Isto também tem a ver com os arquivos.) Pensar o livro com o mundo, pensar o mundo com o livro. Eu sinto que estou aqui não para dizer de algo que está escrito, mas que fala junto.
[4] VIRNO, Paolo. Cuando el verbo se hace carne: lenguaje y naturaleza humana. Buenos Aires: Cactus: Tinta Limón, 2004.
________. Virtuosismo e revolução. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2008.
[5] HTTP://blurting-in.zkm.de
Texto publicado em Fora do Eixo (2010) escrito a partir da participação em um seminário organizado em 2008. Funarte / Brasilia.