Instinto e instituição: desbordes institucionais entre a estética e a clínica

Organizadoras_
Cristina T. Ribas, Paula Cobo-Guevara e Maria Amélia Bulhões


Apresentação_

Desde a experiência da crítica institucional anglo-saxã, se criaram novos diagramas conceituais para repensar a produção (e as condições) das práticas artísticas contemporâneas, a partir das porosidades e encontros com práticas sociais e de novas concepções espaciais dos anos 60, produzindo, entre elas, um desborde disciplinar. Por sua vez, a análise institucional vai produzir experiências, saberes e práticas singulares, também desde uma perspectiva de crítica radical às instituições, neste caso, “entramadas” nas instituições psiquiátricas, escolares, universitárias, de saúde, etc; nomeando estes desbordamentos e modulações sob o conceito de “transversalidade”. De que forma estas duas trajetórias, sejam elas travessias, navegações ou rastejos de pensamento poderiam abrir-se em afetações (afecções) comuns, atualizando experiências, práticas e saberes? De que forma se criam ferramentas, e estratégias que nos dão acesso ao problema da produção de subjetividade e, por tanto, aos modos de existência que subvertem o regime colonial capitalista, racista, antropo-logo-falo-cêntrico?

Neste dossiê damos espaço a algumas produções artísticas, críticas, narrativas e historiográficas que vem surgindo de um caminho traçado na experimentação tênue entre “instinto e instituição”, como debateram Gilles Deleuze e Félix Guattari, e outros autores que focam no que poderíamos pensar, talvez estranhamente, por destituinte, também para pensarmos uma saúde menor, e junto a ela, uma saúde menor da arte, com a minúsculo. Atentas às novas intervenções (e invenções) institucionais que vem sendo inauguradas e instauradas e às formas de produção social situadas entre os modos da clínica e da cultura convidamos autores para fomentarem esse debate, partilhando seus referenciais e suas ferramentas conceituais, e para compartilharem suas práticas.

Procuramos com esse dossiê reunir a contribuição de pesquisadores, artistas, psicanalistas, psicólogas e psicólogos, profissionais de saúde e mais, investidos nos estudos da subjetividade e em re-situar uma ético-estético-política desses desbordes institucionais. O dossiê Instinto e instituição apresenta artigos que surgem de práticas situadas, a partir da análise institucional, da anti-psiquiatria, da saúde e da saúde mental na América Latina e alhures, de clínicas públicas de psicanálise, de práticas artísticas e clínicas, de clínicas ecosóficas, que, cada uma à sua forma, surgem de uma arte das processualidades, de focos de criatividade mutante, não cafetinada, e das formas insubordinadas, fragmentárias e ao mesmo tempo insurgentes diante dos limites institucionais e das forças normotizantes que se solidificam na atualidade, práticas portanto, decoloniais. Mais do que uma reorganização topográfica, de campos ou áreas do conhecimento, nos motivou reunir aqui produções e pesquisas que podemos agarrar pelo desborde, pela barra (como de uma saia), e, porque não, pelo meio mesmo, como acesso ao campo de forças, problemático e inventivo, dessas experiências. Trabalhamos aqui uma vontade que apreendemos da história da análise institucional no Brasil, uma vontade política de produzir novos problemas, que seja uma vontade de invenção que dê passagem a afetos-matéria, e em movimento – entre espaços, grupalidades, instituições.

O dossiê apresenta artigos e ensaios que surgem de práticas situadas, a partir da análise institucional, da anti-psiquiatria, da saúde e da saúde mental na América Latina e alhures, de clínicas públicas de psicanálise, de práticas artísticas e clínicas, de clínicas ecosóficas, que, cada uma à sua forma, surgem de uma arte das processualidades, de focos de criatividade mutante, não cafetinada, e das formas insubordinadas, fragmentárias e ao mesmo tempo insurgentes diante dos limites institucionais e das forças normotizantes que se solidificam na atualidade, demarcando que são práticas portanto, decoloniais. Mais do que uma reorganização topográfica, de campos ou áreas do conhecimento, nos motivou reunir aqui produções e pesquisas que podemos agarrar pelo desborde, pela barra (como de uma saia), e, porque não, pelo meio mesmo, como acesso ao campo de forças, problemático e inventivo, dessas experiências. Trabalhamos aqui uma vontade que apreendemos da história da análise institucional no Brasil, uma vontade política de produzir novos problemas, que seja uma vontade de invenção que dê passagem a afetos-matéria, e em movimento – entre espaços, grupalidades, instituições.

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Complexidade, Cartografia de

{resumo}

A noção de complexidade emerge no trabalho de Felix Guattari relacionada à sua produção de cartografias esquizoanalíticas (GUATTARI, 2013). A complexidade como conceito pode ser pensada da mesma maneira que as cartografias esquizoanalíticas, ambos conceitos são gerativos e servem não apenas para entender, mapear e analisar mas também para incitar, inventar, criar, modular processos. O conceito de complexidade, junto com a análise de Guattari de modos de subjetivação no capitalismo contemporâneo é muito útil para entender políticas de subjetivação (ROLNIK, 2010) implicadas em modos de produção contemporâneos, seja no campo das artes, da clínica, dos movimentos sociais e outros. Neste artigo eu discuto o trabalho de coletivos, grupos, projetos de pesquisa que têm usado a cartografia de complexidade para trabalhar processos na tensão micro-macropolítica. Eu argumento neste artigo como processos cartográficos são constitutivos dos cartógrafos-pesquisadores eles mesmos, interferindo portanto na dicotomia que separa pesquisador do objeto de pesquisa. A cartografia opera como ferramenta militante e micropolítica, realizando a análise dos fluxos do poder e do capital, ao mesmo tempo em que atua como ferramenta constitutiva de processos de subjetivação, em seus processos de singularização na resistência à diversas opressões.

{da introdução}

Ressalva

A cartografia de complexidade quando aplicada na composição de territórios, na apresentação de mapeamentos, na criação de planos diversos, na criação de novos signos que desviam das significações dominantes é também uma destruição. Quando dizemos cartografia funcionando como ferramenta de composição de lutas de resistência, devemos considerar também a função destruidora das cartografias. A “cognição criativa” (KASTRUP, 2008) trabalhada a partir dos métodos cartográficos não é, portanto, meramente acumulativa. Ela opera por meio de processos e modos de semiotização que além de seleção, edição, desenho, também realiza cortes, apagamentos, destruições.

Complexidade como um conceito

De que maneira a cartografia trabalha processos de singularização ao mesmo tempo em que realiza uma análise do sistema econômico e político que é necessário enfrentar? Neste texto investigo a noção de complexidade como conceito acessório para produzir e analisar processos e projetos que desenvolvem mapas e cartografias, sejam eles mais dedicados ao mapeamento dos fluxos do capital ou à emergência de resistências aos efeitos desses fluxos. Investigo então o trabalho da complexidade como conceito que corrobora nas políticas de subjetivação que os métodos cartográficos mobilizam. O campo teórico e prático são as cartografias esquizoanalíticas desenvolvidas por Felix Guattari1 como processos cartográficos operam processos de singularização ao mesmo tempo em que produzem uma análise dos contextos econômicos e políticos nos regimes de austeridade do capitalismo contemporâneo, aos quais é necessário resistir. São matéria deste texto o capitalismo contemporâneo, as lutas de resistência às subjetivações capitalísticas e as políticas de subjetivação e singularização das lutas elas mesmas.

A noção de complexidade emerge no trabalho de Felix Guattari relacionada à sua produção de cartografias esquizoanalíticas (GUATTARI, 2013). O conceito de complexidade pode ser pensado da mesma maneira que as cartografias esquizoanalíticas, ambos conceitos são gerativos e servem não apenas para entender, mapear e analisar mas também para incitar (unleash, inventar, criar, modular processos. A complexidade surge com as bifurcações incitadas pelos processos clínicos no seu encontro com a micropolítica, e faz parte da heterogênese ontológica de Guattari. Guattari define em Caosmose (1992) que “a esquizoanálise, mais do que ir no sentido de modelizações reducionistas que simplificam o complexo, trabalhará para sua complexificação”, o que ele chama de um “enriquecimento processual”. A esquizoanálise e a cartografia trabalham então de maneira a corroborar a “tomada de consistência de linhas virtuais de bifurcação e de diferenciação” (GUATTARI, 1992, pp. 90-91) em processos de subjetivação. Essa proposta diagramática (e não programática) de Guattari não quer levar sujeitos concretos a bloqueios reais, expondo suas vidas a um caos que os imobiliza, mas quer incitar “caosmoses”. Aquilo que nos imobiliza, por sua vez, são os processos de subjetivação capitalísticos, que exaurem nossa potência de desejo, pré-significando nossos fluxos produtivos dentro da normatividade do capital (subsunção da arte, subsunção da política, subsunção da clínica, subsunção da cartografia – tudo a serviço de uma reprodução social colada ao significante capitalístico). (…)

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Publicado originalmente na Revista Indisciplinar (UFMG), 2015

Processos de pesquisa, produção de conhecimento e criatividade processual /// sinopse

Processos de pesquisa, produção de conhecimento e criatividade processual:

Cartografias esquizoanalíticas no Brasil

A tese analisa o conceito de “cartografia esquizoanalítica” a partir do trabalho de Félix Guattari e seu desenvolvimento prático e teórico no Brasil. Práticas cartográficas vem sendo desenvolvidas extensivamente no Brasil desde os anos 1980, sobretudo a partir das teorias e práticas de Guattari e dos contextos da análise institucional francesa e psiquiatria institucional italiana. Cartografias esquizoanalíticas podem ser desenvolvidas como uma ferramenta ou como um dispositivo para analisar o agenciamento coletivo do desejo.

Cartografias mapeiam e criam: elas são realizadas por aqueles que querem produzir suas próprias vidas, ao mesmo tempo em que resistem à opressão e os diversos modos de subjetivação capitalista que levam à subsunção do desejo, do afeto e da criatividade. Em resposta a isto, essa tese traça cartografias esquizoanalíticas que desenvolvem novos processos de pesquisa e novas formas de organização, subjetivação e institucionalização no Brasil.

Explora termos centrais no trabalho de Guattari, como os conceitos de ‘transversalidade’ e ‘micropolítica’ para analisar práticas de processos de pesquisa na academia, como o grupo de pesquisa Subjetividade Contemporânea, e grupos de teatro trabalhando em transversal com saúde mental como a Companhia de Teatro Ueinzz. Analiso como esses processos trabalham através das instituições, das práticas teatrais da clínica e do corpo social. A tese analisa a relação entre ‘subjetividade processual’ e ‘criatividade processual’, propondo o ‘processual’ como a forma de acoplamento entre sujeitos, modos de expressão e instituições.

Esta tese argumenta contra noções redutivas de arte politicamente engajada que propõe oposições entre as práticas estética e política, e trabalha contra definições institucionalmente circunscritas de pesquisa baseada em prática. Ao contrário, esta tese propõe novos recortes e diferentes genealogias de práticas que transversalizam e radicalizam a produção estética, conectando tais práticas a suas bases políticas, por for a da agenda das grandes instituições culturais, dos mundos e mercados da arte. A partir da análise de práticas, esta tese argumenta que cartografias esquizoanalíticas trabalham conjuntamente a ‘criatividade processual’ e a ‘produção de subjetividade’ permitindo uma reorganização dos campos dapolítica, da estética e da produção do conhecimento.

* Tese aprovada em Dezembro de 2016 no Art Department, Goldsmiths College, University of London, UK. Bolsista Capes – Doutorado Pleno, 2012. Supervisão de Dra. Susan Kelly.

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Processual Creativity /// synopsis

\\Research Processes, Knowledge Production and Processual Creativity:
//Schizoanalytic Cartographies in Brazil

Cristina Thorstenberg Ribas

Synopsis*

In this thesis I analyse Félix Guattari’s notion of schizoanalytic cartography in its theoretical and pragmatic development in Brazil. Cartographic practices have been developed extensively in Brazil since the 1980’s, stemming from the theories and practice of Guattari and from French and Italian institutional analysis. Schizoanalytic cartographies are broadly developed as a tool to work through collective processes, as a device to analyse the collective agency of desire. Cartographies both map and create: they are realised by those who want to produce their own lives, while resisting oppression, and modes of capitalist subjectivation subsuming desire, affect and creativity itself. This thesis therefore traces schizoanalytic cartographies that devise new research processes and new propositions of organisation, subjectivation and institutionalization in Brazil. It explores key Guattarian terms ‘transversality’ and ‘micropolitics’, to analyse the practices of research processes in academia, such as Contemporary Subjectivity Research Group, and theatre groups working in transversal with mental health care, such as Ueinzz Theatre Company. I focus on how these processes work across institutions, theatre practices, the clinic and the social field. The thesis traces their work on “processual subjectivation” and “processual creativity”, proposing the “processual” as the core form of assemblage between subjects, modes of expression and institutions. This thesis argues against reductive notions of politically engaged art that pose oppositions between aesthetics and political practice, and against institutionally circumscribed definitions of practice-based research. Instead, the thesis proposes new frameworks and different genealogies of practice that transversalise and radicalise aesthetic production, connecting it in new ways to political grounds, outside of the agenda of larger cultural institutions, art worlds and markets. Through the examples of practices analysed, it argues that schizoanalytic cartographies bring “processual creativity” and the “production of subjectivity” into relation, and allow us to reassemble the fields of politics, aesthetics and knowledge production.
 

* Thesis to be submitted by September 2016 @Art Department, Goldsmiths College, University of London, UK. Bolsista Capes – Doutorado Pleno, 2012.

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‘ler é uma loucura’

eu nunca sorri tanta para um livro. tenho certeza que sorri não só pelo caminho todo que ele fez para chegar. pelas mãos da querida amiga Monica atravessando todo o oceano. pela pint que circulava no meu corpo. mas tambem porque ele veio acompanhado de erva, cuia, bomba, sling, outros livros sobre cartografias e presentes para a Hannah da tia Anamalia. porque o livro faz parte do mundo das coisas e das formas, ainda que tenha seu modo peculiar de operar. sorri não só porque abri o pacote no ônibus rumo ao sul, depois da conversa deliciosa com as amigas. tanta conversa inacabada! tanto desejo de seguir conversando. não só porque ele é de 1988, e a fonte e impressa fazendo um sulco no papel. não só porque ele veio de um sebo de Manaus, para uma caixa postal em Florianópolis. nunca sorri tanto para diagramas em português que eu ainda estou tentando decifrar, que me afetam, e que vão revelando encontros com esse personagem real e fictício – Félix Guattari – que é uma espécie de guia na minha tese. mas também uma espécie de caça, que eu vou perseguindo na floresta do caos. sorri muito não só porque encontrar um livro que se deseja é como uma encruzilhada, uma bifurcação, ou o fim de uma trilha numa viagem. é como sair de um certo exilio, de um certo isolamento, abrindo um espaço desejado. nunca sorri tanto para um livro, e gargalhei quando abri a capa e ali dentro encontrei o pequeno lema da livraria e sebo O Alienista de Manaus. “ler é uma loucura.”

10 06 2015

Infraestrutura: maternidade, paternidade, economia do cuidado, trabalho

Infraestrutura: maternidade / paternidade / economia do cuidado / trabalho

Cristina Ribas | ((com parêntesis de Barbara Lito))

 

“Estamos dispostos a fazer algo pelas futuras gerações? Então resolvamos nossa dor infantil e coloquemos nosso corpo a disposição dos que são crianças hoje.”
Laura Gutman

 

A maternidade desacelera o mundo. Ensina ele que só há uma economia: a economia do cuidado.

Acordo num dia sem saber, que horas são? A contagem é do estômago pequeno daquele serzinho iluminado que ao lado me diz, tenho fome, ou é que foi perturbada por um sonho de monstro, de coruja noturna como já me disse uma vez. A hora é também equação: contagem das horas de sono, se é hora de acordar mesmo, ou se é hora de ficar, fazer estender o sono, aumentar a preguiça cair em sonho novamente. Acordar, posso tentar só eu, posso, preciso trabalhar (aquele tanto de coisas acumulado, a demanda constante), e arrisco 20 minutos nessa manhã silenciosa, quase segredo, só minha. 20 minutos às vezes me dão tempo para entrar, de novo, na trama do irresolvível (do que foi deixado na noite anterior, arquivos abertos, anotações esparsas). Ela acorda logo depois de mim, vem caminhando pessoa pequena, choraminga, mama no peito. Estamos juntas, colo e chamego. A contagem da hora enquanto olho para ela segue projetiva, planejando o dia por vir. Dia de quê? Dia de trabalho, dia de creche, dia de entrar na linha do tempo de fora, de um tempo grande e irresponsável com a nossa temporalidade pequena. I n t e r r o m p e r . Arriscar cortar e acelerar esse tempo da pessoa pequena, que não sabe das razões, e as quais lhe explico. É hora disso, de creche e de trabalho, de meias e de roupas, qual é o clima lá fora, de fazer caber o que se precisa na mochila, de conferir as coisas todas na bolsa, se há bilhete da creche, é fraldas que pedem. Preparar o café, alimentar, conversas, rimos juntas, nem sempre dá tempo. Não estamos sós, o pai está junto, dividimos tarefas, criamos um sistema. Temos, afinal, nossa estratégia (temos?). As manhãs são organizadas num tempo conciso, e tempo de despedida: deixo-a no portãozinho de sua sala catterpillar, abandonada saio eu para meu playground da vida adulta, vida essa a ser reinventada.

Eu sou daquelas que se permitiu estranhar ao máximo na gravidez, deslocar e ouvir as sensações de um corpo hormonoturbinado, hipersexualizado, e ao mesmo tempo que sensível e frágil, forte e mutante… E me permiti continuar, da maneira como a própria biologia do corpo continua, um estado de mutabilidade que se estende após parir, percebendo incorporar-se em todo espaço  atmosférico da casa a mudança molecular da chegada de uma nova pessoa. Como é que o mundo a recebe? Eu e seu pai acendemos a atenção extrema na sua dimensão pequena, na sua delicadeza e imprevisibilidade, uma atenção que é sobretudo i n t u i ç ã o. Com isso adentramos também a comunidade-de-todas-as-cores de pais e mães que se constitui ao nosso redor, e da qual passamos a ser como membros natos, aprendizes e consultores de amigos que vão entrando naquela mesma sensibilidade do mundo, eles também tiveram bebê. Na dimensão pequena e misteriosa, silenciosa e sem linguagem (são grunidos) daquele corpo e realidade pequenos, de potência molecular, o que vai ficando estranho, mesmo, são as relações de um “mundo adulto”. Contrastam as tarefas, as responsabilidades (?), os compromissos, os conteúdos.  Saltam aos olhos os sistemas de valoracão, comunicação e significação que criamos. Com a chegada de uma filha, de um filho, o mundo que reproduzimos nos percalços da vida como naturalidade primeira (ainda que cada um na sua cartografia particular), é subitamente freado, cortado, interrompido.

((… Essa semana que entra o Davi faz 38 semanas. Já tem o mesmo TEMPO do lado de fora que passou do lado de dentro. A questão do tempo é muito doida, porque eu não sinto que desacelerou… Eu me sinto teletransportada mesmo pra uma outra temporalidade, específica dessa nossa díade. Claro que a Hannah já ta maiorzinha, e a gente acaba tendo que fazer um rehab pra voltar pro tempo da vida da onde a gente foi radicalmente arrancada quando nasce a cria. Mas tenho a impressão de que nunca vou conseguir voltar com o CORPO todo…))

Algumas questões, dúvidas e enfrentamentos aparecem. Algumas que assumimos, e outras que não assumimos (para si ou para os outros ao nosso redor). A direção de  nossos movimentos no mundo anda tão concentrada nos fazeres do trabalho que viver com a filha e cuidá-la contrasta imediatamente com o que quer que tenhamos hoje por trabalho, visto que, num crescente, o trabalho se mistura ao tempo da vida. Trabalho imaterial, trabalho precário. Quando digo “trabalho” digo uma mistura de trabalho com militância, um tipo de produtividade que toma conta dos nossos dias, noites, afetos, emoções, e que gera renda, mas que muitas vezes também não gera renda. Quando falamos em trabalho hoje em dia necessariamente falamos em precariedade, visto que o emprego formal está em franca derrocada, e muitas vezes os contratos temporários, na verdade, se fazem valer da não regulação trabalhista, sem a garantia de muitos direitos, ou seja, na precariedade. Então aqui devemos levar em conta – para equacionar com os pensamentos sobre  c  u  i  d  a  d  o  que seguem no texto – sob quais condições trabalhamos, se somos auto empregados, se temos emprego, se somos bem remunerados, se esperamos um aumento, se tememos a demissão, se criamos uma instituição!

Quero embarcar aqui brevemente em duas questões ligadas a trabalho x cuidado. A primeira questão a perda da autonomia do tempo, ou de um tipo de tempo (tempo produtivo?), e a politização do trabalho doméstico; a segunda a perda da certeza, de algumas convicções em relação ao que se faz (relacionadas mais ou menos à noção de trabalho, militância, etc). No final faço um ensejo de como podemos pensar no cuidado dos adultos eles mesmos, aqueles que tiveram filhos, e como pensar na participação dessa assuntação nos nossos vocabulários cotidianos, e na reprodução de nós mesmos, de nós mesmos mais ou menos como movimento.

A perda do tempo, ou a ideia de… 

Embarcando na primeira questão: a dúvida se coloca assim: se tomar conta da filha toma meu tempo, como não opor a filha ao trabalho (aquilo que eu faço para ganhar dinheiro) visto que preciso seguir trabalhando? Essa oposição é simples demais, contudo, sobretudo porque ela separa em duas dinâmicas o trabalho e a vida com a filha. A inversão dessa oposição é exatamente a raiz da mudança… Visto que o tempo do cuidado da filha pode ser intensivamente lento, prazeiroso e imprevisível, posso pensar então que o tempo, no cuidado, é mais de ordem subjetiva. ( ( É porque o tempo é lento que essa entrada-vocábulo s a i demasiado devagar? ) ) E o tempo da produtividade do trabalho seria aquele que eu posso controlar? Mais objetivo? Será? Ou doutra maneira, da produção do tempo. Ou seja, o tempo atomizado da criança sempre vai contrastar e empurrar a ideia de produtividade requerida pelo tempo do capital, tempo esse que por sua vez, ao requerer uma implicação da vida num tempo produtivo, ele mesmo atomizado, por sua vez,  com a precariedade das condições de trabalho e pelas novas condições do trabalho imaterial que se torna toda uma questão de tempos descontínuos em cooperações virtuais. Cruzamentos… Ramificações… Desvios… Impossibilidades?

((… Nem sei se eu vou ter TEMPO de te responder como eu gostaria. Acabei de conseguir colocar o tourinho pra dormir (depois de 1h e 30), que agora resiste resiste, quer ganhar o mundo. Uma das primeiras impressões que tive foi que o Davi era um marcador temporal implacável, trazendo ele pra esse tempo cotidiano capitalista. Mas ele relativiza esse tempo o tempo todo, porque simultaneamente me leva pra eras e eras ancestrais (primitivas, genealógicas, genéticas…) e de salto eu já estou no futuro. Nesse primeiro ano, me pego vendo fotos antigas dos meus avós, tios, pais, minhas e de meus primos, e vejo o quanto de vida a nossa linhagem já caminhou, até chega no Davi, que carrega com ele coisas deles (e dos bisos, tataravós, etc) que eu desconheço. E pisco, ele já está com 8 meses, engatinhando, ontem mesmo tava com cólica, chorando… E começo a sentir nostalgia dele como tá agora. Agora sinto saudade dele como tá agora, porque não é possível frear esse tempo com ele, que às vezes passa arrastado, mas é implacavelmente veloz, que é próprio do espaço de maternar. Centrífugo e centrípeto. Tempo de átimo e não de cronos))

… E o trabalho doméstico

Essa questão do tempo traz consigo outra: a possibilidade de que uma remuneração – o fragmentário e temporalizado salário-maternidade, o salário social ou renda mínima, ou a bolsa família por exemplo – seja o reconhecimento da função social do cuidar, o que se chama mundialmente de “trabalho doméstico.”A remuneração é um aspecto político da economia do cuidado, imprescindível numa realidade contemporânea em que o cuidado ainda não tem o espaço devido junto aos fluxos econômicos da sociedade.

Essa remuneração não dá conta, contudo, e talvez nunca vai dar, de aquietar a questão da percepção e da produção do tempo no cuidado. Me refiro aqui não tanto ao cuidado como profissão, o trabalho feito pelos cuidadores, mas à percepção do cuidado como ocupação primeira dos pais e mães, nas relações familais. Será que receber algum tipo de remuneração (uma licença maternidade, por exemplo) acomoda de alguma maneira, por um tempo, o conflito que uma mãe e um pai podem passar, ao liberar seu tempo (de trabalho) para a rotina de intuição e cuidado?

Observando o aspecto subjetivo do tempo do cuidado, cada mãe e cada pai tem que encontrar a maneira suave como a passagem de um a outro se dá (do cuidado ao trabalho), a transição de cuidadores primários de seus filhos para (voltarem a ser) trabalhadores num mercado (ainda que precário) de trabalho. Há diferenças nessas temporalidades, e elas dependem também da situação econômica de cada configuração familiar.

(( … (pausa pra dar de mamar) Toda vez que eu tô acoplada no Davi, ou ele em mim, especialmente quando fico com o corpo ali e a cabeça nas trocentas outras coisas do tempo cronológico ordinário, eu escuto a voz que ele ainda não tem me dizendo: “vem mamãe, se entrega aqui comigo, olha como é gostoso e quentinho aqui, fica aqui, aqui e agora.” … Voltei a pensar no corpo. Nessa temporalidade outra da existência infante que em três meses cronológicos tem um corpo que dobra de tamanho (nunca mais nosso corpo passa por isso, olha só a Alice aí). Não é à toa que esse momento é muito aflitivo para as recém paridas, ainda com vestígios da temporalidade ordinária nesse corpo materno ainda deformado. Esse: “vem pro átimo que eu quero mamar, mamar e crescer, mamar sem pensar no amanhã, no ontem, ai que delícia”. … E esse discurso patriarcal, que separa a temporalidade trazida pela criança do corpo da mãe e do mundo ordinário, de onde ele vem? porque? pra que serve? … (Ai, tenho que fazer a mochila do Davi pra sair, tomar banho, separar a comida, etc) … ))

Então há a licença maternidade, e quando há, o trabalho doméstico remunerado regulamentados diferentemente em cada país (ou ausentes, no caso do segundo, no Brasil), e há tambem o trabalho “de rua”, o trabalho como instrumento/ferramenta de sociabilidade e participação em redes, relações, contratos, vínculos…

Mundialmente o cuidado é atividade relegada às mulheres, na grande maioria dos casos. Seja o cuidado dentro de relações parentais ou o cuidado como trabalho (cuidadores, enfermeiros, professoras, cuidadoras de crianças…). (Lá em casa é um pouco diferente…, ou seja viemos construindo uma relação em que o cuidar é tarefa amorosa de ambos, pai e mãe, mas isso é outro parêntese.)

O cuidado, a criação dos filhos, foi politizada enquanto trabalho por lutas feministas que apontaram: se o capitalismo se beneficia desse cuidado, dessa procriação e consequente criação, visto que eles serão também “força-trabalho”, o cuidado das filhas e dos filhos é também trabalho, porém não remunerado! Das lutas feministas por uma valoração social do cuidado surgem as demandas por uma remuneração direta, estatal e por benefícios por se ter filhos, e ponto. Aqui gostaria de separar o benefício da licença maternidade (depende no Brasil de contribuições já feitas à previdência social) por um (projeto de) salário social (não deveria depender de contribuições já feitas, *) ou ainda do benefício por filho. Na Inglaterra por exemplo o benefício por filho se chama “child care credit”, e pode ser recebido até 18 anos de idade. O benefício se destina à provisão de bens que a criança demande na sua pequena existência, até sua puberdade e adolescência, comida, fraldas, roupas, remédios, lazeres, …

No Brasil o Bolsa Família foi criado com o objetivo de beneficiar famílias abaixo do nível de pobreza e em nível de pobreza, cuja renda familiar não ultrapasse os R$ 154,00 por pessoa, provendo recursos mínimos para garantir a alimentação dessas famílias. (**) A contrapartida é que todas as crianças da família em idade escolar devam estar matriculadas e frequentando escola, recebam vacinação, tenham acompanhamento médico até 7 anos de idade, não trabalhem, e no caso de grávidas que façam acompanhamento pré-natal.

Ainda que uma perspectiva feminista não seja muito conferida nos benefícios do Bolsa Família, acredito que o programa deva ser compreendido também na perspectiva da luta das mulheres (e dos cuidadores), visto que é um benefício que incrementa a renda da família para cuidar dos seus filhos.  Segundo pesquisas recentes, o programa tem caráter emancipatório para muitas delas, que se sentem encorajadas a se libertarem da trama familiar, quando poderiam estar presas em relações que já não querem (muitas mulheres se divorciam, por exemplo), e são estimuladas a cuidarem mais de si. Ou seja, nos casos em que o homem representa a fonte de renda financeira primária, o incremento do Bolsa Família encoraja as mulheres a tomarem o rumo de suas vidas, quando antes poderiam depender da confusa relação amorosa misturada à dependência econômica. (***) Em outras situações, em que o homem já não está mais em casa complementando renda (porque muitos se separam e vivem sozinhos, sem a responsabilidade de cuidar das filhos e dos filhos) as mulheres também são beneficiadas pelo recurso, mas o valor do benefício não remunera, de nenhuma maneira, o tempo do cuidado dedicado por elas no crescimento dos filhos, visto que é um valor extremamente baixo, e não configura uma renda mínima.

A maternidade nos seus começos, é assistida, para aquelas que tem emprego formal, por uma curta licença maternidade de quatro meses.  (O pai tem licença de uma semana!) Esse seria o tempo para cuidar de nossos filhos, sem trabalhar, e preparar-se para a dolorosa transição de terceirizar o cuidado! Os quatro meses, por sua vez, não fecham com os seis meses de amamentação exclusiva recomendados pelo Ministério da Saúde. O que não faz muito sentido… Mas muitas mulheres conseguem negociar isso com seus empregadores, e ficam mais tempo em casa. Mas muitas, muitas mudam de planos… E colocam em questão o modelo anterior de trabalho que tinham.

((… Fiquei pensando também na questão do corpo nesse jogo, que é o espaço onde ele é jogado. Logo que a gente começou a passar os perrengues de cólica (acho que bem antes até, quando tava contraindo, antes de parir, e tive que ficar de repouso) eu me liguei que a dor trazia o corpo pra esse agora infinito. Lembrei da Laura Gutman nesse livro “Amor o dominación, los estragos del patriarcado”.  … Não sei bem se o trabalho não está englobado numa estratégia maior de dominação dos corpos, que evita mesmo o contato intimo entre pais e filhos (e velhos moribundos, e doentes, e loucos). Evita a presença deles no espaço cotidiano. Segrega. Fico pensando naquelas imagens antigas, algumas até recentes, das mães trabalhando com seus filhos pendurados, de boa, lavando, colhendo, plantando, aboiando… Acho que o corpo desvitalizado e congelado, moldado para um trabalho cada vez mais estático (no corpo, não na cabeça) é incompatível com a potência de vida de uma criança. Taí as milhões de vistas da galinha pintadinha comemorando não sei quantas crianças quietinhas. (****) O trabalho estático no corpo, mas não na mente, também é incompatível com essa temporalidade átmica da criança, sem passado nem futuro. pra gente é muito dfícil morar nesse eterno agora. … ))

Ora, sabemos que a falta de benefício para o cuidado ou a precária remuneração é reflexo de uma série de modos culturais arraigados e naturalizados, que se baseiam na divisão dos tipos de trabalho que homens e mulheres fazem (e o salários diferentes que recebem), na crença da naturalidade do cuidado como coisa feminina. Esse ponto é um dos mais importantes para as lutas pela legalização do aborto, visto que socialmente o cuidado é entendido como uma continuidade inquestionável do ato de gestar e parir. Quantas de nós já abortaram ou evitaram ter filhos pelo temor de não conseguir conciliar o cuidado com o trabalho? Pelo medo de não conseguir ou por não conseguir mesmo ter condições financeiras de cuidar de uma criança? Por temer reproduzir a sociedade machista enquanto tal em que o cuidado está relegado determinantemente às mulheres, e que portanto deixa a mulher em condições de trabalho menos favoráveis? Aliás: quantos abortos mal sucedidos são necessários para mudar as condições sociais do abortar? Para legalizar o aborto?

Silvia Federici, feminista italiana conta como as feministas dos anos 70 apreenderam que compreender o “trabalho reprodutivo” no regime da exploração (o capitalismo acumula também em cima disso) permitiu o reconhecimento de uma luta comum das mulheres:

“Uma vez vimos que ao invés de reproduzir vida nós estávamos expandindo a acumulação capitalista e começamos a definir trabalho reprodutivo como trabalho para o capital, nós também abrimos a possibilidade de um processo de recomposição entre as mulheres.”  (*****)

O cuidado reconhecido como um trabalho, como uma ocupação que serve à sua maneira à complexidade de um sistema de produção/reprodução, acaba se tornando o t e r r e n o   d e   l u t a , usando as palavras de Federici, e esse terreno de luta se estende às vidas daqueles que cuidamos. Ela pergunta: como lutar sem entrar em conflito com aqueles que amamos? (Falarei disso mais adiante.)

A perda do sentido. Havia um antes?

A outra coisa que pega que é: faz sentido? Fazer as coisas da maneira como se fazia?

Desde o começo eu resisti em não colocar a filha de um lado (a vida com ela, o cuidado), e o trabalho. Isso quer dizer que quando eu pensava em trabalho eu pensava em algum tipo de movimento, de fazer, que, menos do que pudesse incluí-la, pudesse se fazer  c o m  ela. Ou seja, em que ela estivesse presente, conferindo sentido àquilo. Mas não sabia bem o que nem como… Organizar uma residência-projeto para artistas-etc com filhos? Talvez…

É claro que quando se começa a questionar isso, se está questionando o que é que entendemos por trabalho e com o que é que nos comprometemos em um mundo capitalista-produtivista em que cada vez mais o produzir toma espaço. Então arrisco uma definição que expressa, na verdade, a raiz precária da minha experiência de trabalho: qualquer atividade que traga remuneração, não necessariamente que se tenha como profissão, que construa um comprometimento com algo que é ligado ao que se compreende como trabalho em si, mas que se conecta numa linhagem de ações e regularidades, que mantém aceso um certo vínculo, seja com as instituições com as quais nos associamos, as parcerias, a participação na atualidadede de um debate, os discursos e posições que adotamos. Pois bem, na mudança de sentido das coisas, é essa ideia de r e g u l a r i d a d e que se quebra quando um filho ou filha nasce (ou mais de um!). Essa é definitivamente uma quebra no sentido de um fazer que poderia estar muitas vezes automatizado, tecnicizado, dessubjetivado. Vou deixar umas perguntas soltas, sobre o sentido do trabalho: para quem e para o quê eu trabalhava? fazia? me mexia antes?;  ou com que velocidade, com que dedicação, com que efetividade, com quanto de mim?…

A noção de continuidade é quebrada pois a temporalidade do filho é caoticamente outra, e isso reflete os sentidos que ela ou ele forçosamente vem sacudir. Cada um ou uma de nós percebe isso distintamente, claro. Para quem se conhece de um jeito, a quebra vem destituir uma série de convicções. Acredito que essa quebra acontece porque o que aparece é  i n t u i ç ã o  como a chave do cuidado. A intuição como um tipo de escuta, um cuidar com, que requer tempo para entender modos e ritmos… Um imensamente-cuidado, essa aproximação-atenção e fusão quase-orgânica e por vezes quase-estrangeira que descobrimos quase-inata em nós, que tiramos da caixola, da cartola, que vestimos quando seguramos a filha no colo, quando sentimos seu cheiro que ativa nossos hormônios mamários. Para outros essa quebra não acontece tão claramente, e a filha ou filho entra mais rapidamente na composição de um mundo mais perto eu diria de um “como era, como eu fazia”. Ou é que aquela zona de atravessamento gravídico eu diria, de intensidades hormonais, dura menos e é enquadrada também na temporalidade da produção. (Ai!) Cada uma de nós vive uma configuração diferente, ora similar, de retorno ao ritmo de trabalho depois de parir.

A filha o filho ao desprogramarem o sentido das coisas, pedindo intuição e cuidado, demandam também o descobrir, o inventar, o brincar, … virar ao avesso, sujar, desfazer, rimar, mimar, molhar, montar, desmontar, destruir… E olhar bem bem de perto. Estressar ou intensificar o tempo do cuidado me parece que é parte da resistência ao nivelamento de nossas ações num tempo único e produtivista, é parte da pluralização dos tempos, e da recomposição, ou de uma inclusão, como diz Federici, na luta por uma libertação das amarras do mundo pré-concebido da produtividade do capital do qual as filhas e os filhos não precisam automaticamente fazer parte… Um arco grande, mas vamos lá.

((…E sim, acho que isso tudo tem muito a ver com o cuidado. E acho que trazer tudo isso de volta pro corpo, prum corpo hiperafetado e atravessado pela temporalidade infante é sim revolucionário. A micro-revolução que eu escolhi me engajar. No Mignolo(******) que eu te mandei, a simples existência infante já é por si só uma desobediência epistêmica radical.))

…  uma desobediência epistêmica radical

Individualidade e reprodução do movimento 

Voltando ao relato da minha experiência, nos primeiros tempos em que a coisa foi pegando, em que já não podia procrastinar o fato de que estava na hora de trabalhar (de recuperar algo dessas linhas de continuidade, de vínculo, que nunca se perderam, mas que definitivamente se enfraqueceram, era hora de fazer dinheiro) eu produzia uma espécie de estresse incontrolável. O estresse vinha de tentar evitar a sensação de negar, por não poder estar com a filha por ter que trabalhar, como se eu tivesse negando ela mesma… O estresse e o sofrimento que surgiu teve que assumir uma individualidade necessária. Afinal, na interrupção de um modo de ser em vias de recomposição nessa transmutação para uma mãe-que-trabalha ficamos pescando sapo, comendo mosca, movendo-se sem saber por onde. Aqui apareceu para mim algo importante: a recomposição da invidualidade faz parte da maternidade/paternidade, visto que não é um abandono da filha, e é o cuidado em si de si, que tampouco é diretamente um “voltar ao que se era” (como eu resisto a essa imagem!).

Exemplo disso: em Londres a artista Andrea Francke transformou, como parte de seu trabalho final de Mestrado, a galeria da faculdade de artes em uma creche. Um espaço aberto portanto aos pais e às crianças. Queria eu que essa creche seguisse disponível, como espaço de pesquisa e de produção, em que potencialmente pudéssemos compartilhar nossas questões maternais? (E materiais!) Preocupação: ainda que radical a proposta, eu não poderia, por exemplo ancorar naquela vivência a produção do que me cabe agora, minha responsabilidade, minha auto-exploração, minha “contribuição ao conhecimento”, meu doutorado. Eles dependem de um certo isolamento, e dessa ressignificação-recomposição em curso.

H a n n a h. Eu só escrevo porque ela está longe de mim, na creche, outro lado da rua (ou ali dormindo, sono bom de criança a crescer). Se escrevo junto com ela escrevo outro texto. Fazemos desenhos e desenhos, bolinhas, pontinhos, perseguimos linhas, e around e around. Se faço carinha, ela já completa com pernas e braços, e boca, se não tiver. E cabelos, como dizcabêêêlo!

Quando escrevo, escrevo junto com ela aqui, como parte da minha realidade, claro. Quero escrever junto com ela, com ela em mim, mas temo que escrevo para o mundo adulto, esse mundo estranho, esse mundo cuja seriedade me faz rir. A filha vem de um hiperíntimo, um hiperjunto, e ajuda a estranhar o mundo, com o qual copulo depois; mundo com o qual me identifico, e que também desejo. Voltando àquela recomposição, percebo que o cuidado, portanto, não é só com a filha, mas com a mãe e o pai nessa nova passagem de mundo, com o mundo que se recompõe. Da mãe se fala bastante da depressão pós-parto, esse mistério que não está nas calçadas, que é calcado aos espaços íntimos, e ao indizível, visto que se torna indecifrável se não assumimos a dimensão mágica e espiritual da maternidade. Mas e depois, como cuidamos uns dos outros, pais, mães, crianças? Seguimos… A economia do cuidado na luz do dia se torna um diagrama a puxar linhas e linhas de subjetivação, friccionando superfícies de singularidade, abrindo companheirismos num comum (aquela comunidade imprevisível de pais e mães, e avós, e tios, e cuidadores, claro).

A gravidez, assim como a maternidade e a paternidade são, afinal, coisas ordinárias. O comum, por sua vez, não pode ser o comum só-dos-que-tem-filho. Como informar, como passar, como recompor o mundo dos-que-tem-filho com o mundo dos-que-não-tem? Será que é dessa maneira que o problema se coloca? Ou é mais como fala Federici, uma capacidade de colocar em linhas de libertação e composição social um modo de reprodução social (todo movimento precisa encontrar a maneira de se reproduzir, diz ela). Politizar a maternidade e a paternidade, nesse sentido, é um trabalho vocabular, depende de muita conversa, depende de muita troca. Depende de abrir frentes com o mundos alheios vizinhos, as outras forma de copular e de familiar, de lesbicar, de prostituir e de multiplicar. Depende de fazer cuidar, de fazer pensar no cuidar. Mas como? Num estado de mundo em que tudo se acelera, não sei se é possível não se posicionar e dizer, olha, a temporalidade aqui é outra. E não só tempo linear (como dito antes, para que não sejamos escravos da produtividade), mas a função ou a significação. A filha muda molecularmente o mundo porque ela está junto também nessa nova forma de ver o mundo, ela é processo estético, estetizante, ela desacelera a produtividade de um por fazer, e repolizita outras urgências. Quando se diz que é tempo de cuidado, é tempo de para endereçar (e soltar) uma produção do mundo. Um chamado a recompor a estética de um mundo (político, sobretudo), do que faz parte fazer/trazer esse texto para cá: vocabular, brincar, vocavulvar, vocavular.

Vou buscá-la no final da tarde na creche. Meu corpo atravessado pelas leituras, pelos mundos que me desvelam e me desconstroem, fica meio desconcertado. Acho que vivemos como pais uma constante reintegração e desintegração da identidade… Na porosidade dos movimentos adultos que me constituem, o movimento de ir buscá-la acopla e desacopla pedaços sem nunca dar tempo de lavar tim tim por tim tim cada anotação feita. O dia faz-se fragmentado. O corpo também. E de alguma maneira essa emoção de tê-la silencia tantos outros atravessamentos! Já não me importo. Descortina-se de novo o mundo adulto… Encontro seu corpo pequeno e aparentemente frágil, ora mais feliz e suado, ora mais saudoso e manhoso. Ela me leva para o buraco do coelho (coisa que encontramos no gramado ao lado do jardim da creche). Enfia o pé no buraco. Eu evito não dizer o que me vem logo à boca: “cuidado com a cabeça do coelho!”, ela, afinal, não teme pisar nele ou numa minhoca. Ali mora a touperia, ela diz. Ela quer ver a toupeira! I wanna see the mole! E sorri.

Vou buscá-la no movimento integratório puzzle like que não consegue complementar uma coisa e outra, mas que vai me encontrando de novo com ela no caminho – eu me encontrando comigo e com ela – , diante de outras crianças, cuidores, pais. A filha puxa um fio terra-coração, e devires, e devires… Quantas das minhas inseguranças, das minhas dúvidas incompletas silenciam não porque perdem o sentido por completo, mas porque ganham outra configuração no cuidado que ela me traz, como parte da suavidade mesma de sua pequena existência?

(*) Situação do projeto do Renda Mínima Salário Social no Brasil hoje

(**) O programa Bolsa Família existe no Brasil há dez anos. Hoje em dia cerca de 20,6 bilhões (0,5% do PIB) de reais são pagos a 14,1 milhões de famílias (o Ministério do Desenvolvimento Social estima o benefício direto de cerca de 50 milhões de pessoas).

(***) Entrevista com Walkiria Leão Rego, que publicou um livro junto a Alesandro Pinzani sobre o Bolsa Família (“Vozes do Bolsa família”, 2013)

(*****) Silvia Federici, Precarious Labor: A Feminist Viewpoint.

(******) Walter D. Mignolo. Desobediência epistêmica. A opção decolonial e o significado da identidade em política.

Referências:

Federici, Silvia. Precarious Labor: A Feminist Viewpoint (2008). Variant e The Journal of Aesthetics and Protest. http://www.variant.org.uk/37_38texts/Variant37.html#L9

Federici, Silvia. Feminism And the Politics of the Commons. (2010) The Commoner.org

Hirata, Helena; Laborie, Françoise; le Doaré, Hélène; Senotier, Danièle. (org.) Dicionário Crítico do Feminismo. (2009)

La Célula Armada de Putas Histéricas. Primer comunicado de la Célula Armada de Putas Histéricas http://vimeo.com/91641696

https://www.diagonalperiodico.net/andalucia/23274-la-brigada-informacion-como-mortadelo-y-filemon.html

Precarias a La Deriva. A la deriva por los circuitos de la precariedad femenina. (2003) Madrid: Traficantes de Sueños

SOF – Sempreviva Organização Feminista, Cuidado, Trabalho e Autonomia das Mulheres (2010). Cadernos Semprevida.

Este texto é parte do livro-projeto Vocabulário político para processos estéticos. Para ver esse texto no Livro e para acessar o site do projeto clique [aqui]