Sob uma raiz

Sob uma raiz

Quando o cabelo inverte para o outro lado onde não estava eu acordo com as mulheres que não acordam suas filhas corpo contra a gravidade e elas dão um beijo na testa de suas filhas e talvez uma delas seja a enfermeira e outra a cobradora e eu rolo no tapete da sala antes da hora do banho dessa vez sem o segundo tatame embaixo. O tapete é felpudo um pouco gelado umidade de fora rolamos juntas eu e minha filha eu rolo um pouco mais procurando encostar o pedaço da nuca que nunca encosta e de novo vem pra mim quem acorda as filhas das mulheres que não acordam suas filhas?

Construir sua própria vida, construir algo de vivo, não somente com os próximos, com as crianças – seja numa escola ou não – com amigos, com militantes, mas também consigo mesmo, para modificar, por exemplo, sua própria relação com o corpo, com a percepção das coisas.* Um homem escreveu surrupiei a sua percepção para a povoar com meu corpo existência de mulher e outro que disse de uma relacionalidade infinita. Ele, o de antes, pergunta se isso seria como diriam alguns desviar-se das causas revolucionárias mais fundamentais. Preocupação de quem e como as causas urgentes atravessando a escrita de um homem uma mulher se apropria das sensações comuns como emoliente feita de toque e morna ao mesmo tempo em que ela desenvolve maneiras desenhadas na pressa de descascar batatas. Relacionalidade infinita dança improviso mutabilidade modulação.

Uma contagem da vida anonimicamente não sabemos muito bem quem produz os gráficos das vidas anônimas que morrem diante da gente em gráfico morrem diante das mulheres que não acordam suas filhas o meu medo a minha cama por cima de tudo meu sonho por baixo de tudo isso vivemos nas cidades das vidas anônimas e os corpos dos outros são serviços para os nossos. Mas agora as valas de terra solta corpos dos que nunca queremos ver chove e lava os corpos mortos penetráveis superfícies que são fechadas em sistemas de corpos internos neurotizados a doença para dentro. Asfixia aumentada alienação em gráfico especialistas de mortes (homens de gravata).

Posso respirar quando chove muito eu lembro que essa cidade é charco e caminho nas ruas pisando em sementes secas para provocar um craca como aquela do sonho em que a chuva corrompia o cimento duradouro desse prédio onde me penduro como célula macia. Abrir a terra era inevitável eu dizia mas as pilastras estavam seguras o som de cada gota de chuva do lado de fora a chuva desenha um ritual em que o desaguar da nuvem é o lugar de cada morte. Cada morte não posso respirar.

Uma nesga de sol um longo inverno disse outro homem que agora tem medo do fora se encastela para viver depois do inverno. Fecho os olhos e vejo pequenas sementes desperdiçadas nos lençóis freáticos paredes de cimento que secam a terra por dentro uma cova para uma água brotada um teto que pinga também dentro da casa alguma coisa alguma comunidade imaginada de realidade comum de corpos quentes e não dos corpos que vão ou dos corpos que se evitam. Na urgência queríamos uma comunidade de parideiras de mulheres que gozam que abortam e que cuidam. Os filhos doentes do patriarcado são cuidados por quem agora? No abrigo-confinamento a crise dos cuidados a povoar a crise dos cuidados a povoar o invisibilizado em todo e qualquer canto, em toda e qualquer célula doméstica alguns podem mais algumas sofrem mais algumas mães chegam em casa e não podem beijar suas filhas.

Nas costas de mim, nos bolsos do macacão, as cascas de frutas secas nos meus bolsos sun day s as cascas laranja a casa e as cores mornas a luz baixa e aquela pedra esculpida com um nome na lateral da igreja gótica ao mesmo tempo introduzindo o cemitério todo no topo de Glasgow. In the memory of Sundays era um homem ou era um ritual pagão que ocupava ali mesmo do lado da igreja um pedaço de chão terrenal projeção de tempos infinitos. Em casa eu viajo nas paisagens onde olhava para longe procurando quase como se conseguisse perfurar a nuca e expandir espaço sem teto sobre a cabeça onde eu nem sabia que precisaria tanto, agora.

Se eu molhar as cascas secas das frutas com as gotas das chuvas eu vou embora de mim mesma em matéria mágica. Vai embora também um moi idéal e un idéal de moi impressa na tela de projeção virtual procurando olhar sem ser frontal (impossível). Something like that água por tudo água nos meus olhos água por tudo dizem que o vírus habitava as águas sujas antes mesmo de brotar parasita em um pulmão poluído o vírus sem saber esperava uma brecha as condições ambientais um acúmulo de toxinas. Mas estou no lugar que deveria estar anoto coisas do tipo quando há tempo de anotar como mandalas em palavras. Rabiscos de ritual traços cascas.

Choveu tanto. As árvores seguram o limite do lençol freático Domingos un hombre de mucos hablaba por abajo de las sabanas un operario preso na construção do canal por allí húmedo y aun vivo de manos verdes puro limo, algas y hongos el me llama a bajar al canal unos 12 metros abajo de mi ventana. Domingos para ver as formas incompletas de vida e de proteína que cruzam em alta velocidade os subúrbios das águas umedecem a carne da cama o lençol toca por uma fina camada gelada faz uma ponte úmida do meu corpo com o lençol freático.

A Canafístula frondosa me conhece mais que eu habita toda a janela do quarto e carinha minha alma acompanho com ela as cores do dia e ela é um filtro manso das transições dos dias o silencioso canal aterrado entre as ruas que descem do Mont’serrat eu sou a mulher branca do 308 que enumera amorosamente as casas de madeira que existem ainda sobrevivem na vizinhança como hongos coloridos de um outro modo de habitar e os meus vizinhos negros que eu não conheço da história do bairro das calçadas de arenito vermelho que eu queria lamber. Os meus vizinhos das casas de madeira não vão subir para o quinto andar de um prédio de granito marrom que canalizou o lençol Sun days um vôo no espaço aéreo da Canafístula.

Eu tenho outro sonho dessa vez com un hombre de la casa curativa habitava uma casa azul como nas paredes calcadas do Marrocos que nunca fui manchas azules es ahora y no el hombre de mucos que não pode acordar as suas filhas porque algumas delas nem podem acordar (ele está com os ouvidos tapados ele conversa comigo por gestos). O outro está muito ocupado sua vida entre decisões talvez ele leia os gráficos eu espero que ele tenha um tempo entre tantas pessoas que lhe solicitam fecho a tela dos gráficos seguro no colo um bebê com rosto de menino-homem que me pede amamentação como? Interpelada a casa curativa do homem o sonho ainda não é a comunidade de parideiras de paredes calcadas de amoroso sangue.

Eu rolo no solo esticando um último estalo no pescoço desejo sair do sonho vejo algumas plantas aqui em casa e entre as paredes de calcário na umidade as paredes fluxos de sangue fluxos de signo diante da tela evidenciam a vida mais como signo que como vida. Como podem se desfazer de vidas espero desenhando diagramas transformativos olhando uma psyché corrompida remendos de realidade os filhos adultos que não abraçaram seus pais. A minha filha a esperar no banheiro cerrado de névoa amplio o peito para pegar um pouco mais de ar e ele está cheio molhado de água o dia acaba abraço afago quente e é noite de novo debaixo da Canafístula.

* Sob uma raíz de uma árvore Canafístula (Peltophorum dubium) ou Ibirá-pitá (Paraguai e na Argentina). Árvore da família das Fabaceae.

**Escritor homem surrupiado: Félix Guattari, em Revolução Molecular.

Feminismos Bastardos. Feminismos Tardios

Feminismos Bastardos. Feminismos Tardio. Abortar o Estado heteropatriarcal.

Eu sou a puta que pariu.

Eu sou a puta aborteira que pariu e que sabe muito bem cuidar, e também negar cuidado.

Eu sou a puta que pariu corpos livres.

E como aprendi com Ni Una Menos da Argentina. Eles são os filhos doentes do patriarcado. Mal paridos pelo patriarcado.

Imagine que este texto seja uma colagem.

De muitas vozes e muitas vidas. Algumas subsumidas, algumas achatadas. Algumas que se associam a outras que se pronunciam. Este texto é uma colagem. Aliás, leia esse texto com os contratempos e os infratempos e as síncopes dos tempos de um processo não linear, caótico e assustador da instituição da merda patriarcal. Heterocapitalista, machista, racista e misógina. Ou, em vez de merda, podemos dizer instituição do ‘pão com leite condensado’ heteropatriarcal. Afinal, a mais recente instituição assim o é também. A nova versão de ‘pão com leite condensado’ (pra quem não sabe, um bando de homens se masturbando ao redor de um punhado de pães…) segue o golpe que retirou Dilma do poder, e segue o golpe a cada dia.

Esse texto se escreve com os tempos de uma maternidade, de alguns abortos, e de estupros, estupros coletivos inclusive, de feminicídios e de apologias à violência de inúmeras formas, e de violência real, e de… muitos protestos, tuítes, hashtags, tomadas das ruas, rituais afro-ameríndios, peitos de fora… choros, novos enunciados. Uma eleição. E um golpe, já mencionado. E ah! Uma prisão. Exemplar. Histórica. Ideológica. Polícia política. #Elenão #Elesnunca. O tempo da escrita é um tempo que pode coincidir com o seu. Tempos que podem causar (n)uma mulher. E uma mulher que lê outras mulheres. Mulheres puta, puta-mulheres. E que conversa com elas partejando transfeminismos. Partejando feminismos transversais. Texto que vem querendo arrebentar a (aparente) indeterminação e a sexualidade imposta a um feminismo. Feminismo(s) que tem que ser, antes, pelo contrário, não branco, não classista, não heterossexual. Texto de mulheres-trans e transvestigêneres (como diz Indianare Siqueira), que amamentam suas filhas, que acolhem suas companheiras, e que abortam com elas. Abortam também o estado em seu corpo. De seu corpo. Abortam para parir estados pretos. Novas sementes, sementes de Marielle.

Imagine que há homens ao redor. Claro. Você mesmo leitor talvez seja homem. Evidente que há homens ao redor. E eles estão representados, de novo, lá no lugar que nos é tomado, de novo, como violação da realidade e da política mesma, e, sobretudo, como reafirmação dessa distância, dessa alienação. Eles tornam-se representantes. Mas do quê? Política, como eles reiteram, não é lugar para mulheres. Nem para negras, nem para pobres. É a partir do governo desses homens – e da impossibilidade que habitemos com eles espaços de representatividade, e espaços comuns, que esse texto é escrito.

Em 2018, nas campanhas para as candidaturas políticas, o corpo do outro se tornou o corpo do diálogo impossível onde morriam meu afeto e mesmo minha capacidade de escuta (aliás, o que é a escuta no sistema do não diálogo?). Antes de reforçar o outro como já intocável, antes de querer endereçar aquele que já se cristalizou naquela forma, que é o corpo daquele que se constitui ao modo semiotizado pelo conservadorismo fascistoide (e há mesmo fascistas autointitulados!), eu queria poder falar a partir de modos em passagem, de modulações, de alguma coisa que se mistura, e se arranca, para produzir a si, fora de certas capturas.(…)

(texto completo aqui feminismos bastardos-c ribas_def)

Complexidade, Cartografia de

{resumo}

A noção de complexidade emerge no trabalho de Felix Guattari relacionada à sua produção de cartografias esquizoanalíticas (GUATTARI, 2013). A complexidade como conceito pode ser pensada da mesma maneira que as cartografias esquizoanalíticas, ambos conceitos são gerativos e servem não apenas para entender, mapear e analisar mas também para incitar, inventar, criar, modular processos. O conceito de complexidade, junto com a análise de Guattari de modos de subjetivação no capitalismo contemporâneo é muito útil para entender políticas de subjetivação (ROLNIK, 2010) implicadas em modos de produção contemporâneos, seja no campo das artes, da clínica, dos movimentos sociais e outros. Neste artigo eu discuto o trabalho de coletivos, grupos, projetos de pesquisa que têm usado a cartografia de complexidade para trabalhar processos na tensão micro-macropolítica. Eu argumento neste artigo como processos cartográficos são constitutivos dos cartógrafos-pesquisadores eles mesmos, interferindo portanto na dicotomia que separa pesquisador do objeto de pesquisa. A cartografia opera como ferramenta militante e micropolítica, realizando a análise dos fluxos do poder e do capital, ao mesmo tempo em que atua como ferramenta constitutiva de processos de subjetivação, em seus processos de singularização na resistência à diversas opressões.

{da introdução}

Ressalva

A cartografia de complexidade quando aplicada na composição de territórios, na apresentação de mapeamentos, na criação de planos diversos, na criação de novos signos que desviam das significações dominantes é também uma destruição. Quando dizemos cartografia funcionando como ferramenta de composição de lutas de resistência, devemos considerar também a função destruidora das cartografias. A “cognição criativa” (KASTRUP, 2008) trabalhada a partir dos métodos cartográficos não é, portanto, meramente acumulativa. Ela opera por meio de processos e modos de semiotização que além de seleção, edição, desenho, também realiza cortes, apagamentos, destruições.

Complexidade como um conceito

De que maneira a cartografia trabalha processos de singularização ao mesmo tempo em que realiza uma análise do sistema econômico e político que é necessário enfrentar? Neste texto investigo a noção de complexidade como conceito acessório para produzir e analisar processos e projetos que desenvolvem mapas e cartografias, sejam eles mais dedicados ao mapeamento dos fluxos do capital ou à emergência de resistências aos efeitos desses fluxos. Investigo então o trabalho da complexidade como conceito que corrobora nas políticas de subjetivação que os métodos cartográficos mobilizam. O campo teórico e prático são as cartografias esquizoanalíticas desenvolvidas por Felix Guattari1 como processos cartográficos operam processos de singularização ao mesmo tempo em que produzem uma análise dos contextos econômicos e políticos nos regimes de austeridade do capitalismo contemporâneo, aos quais é necessário resistir. São matéria deste texto o capitalismo contemporâneo, as lutas de resistência às subjetivações capitalísticas e as políticas de subjetivação e singularização das lutas elas mesmas.

A noção de complexidade emerge no trabalho de Felix Guattari relacionada à sua produção de cartografias esquizoanalíticas (GUATTARI, 2013). O conceito de complexidade pode ser pensado da mesma maneira que as cartografias esquizoanalíticas, ambos conceitos são gerativos e servem não apenas para entender, mapear e analisar mas também para incitar (unleash, inventar, criar, modular processos. A complexidade surge com as bifurcações incitadas pelos processos clínicos no seu encontro com a micropolítica, e faz parte da heterogênese ontológica de Guattari. Guattari define em Caosmose (1992) que “a esquizoanálise, mais do que ir no sentido de modelizações reducionistas que simplificam o complexo, trabalhará para sua complexificação”, o que ele chama de um “enriquecimento processual”. A esquizoanálise e a cartografia trabalham então de maneira a corroborar a “tomada de consistência de linhas virtuais de bifurcação e de diferenciação” (GUATTARI, 1992, pp. 90-91) em processos de subjetivação. Essa proposta diagramática (e não programática) de Guattari não quer levar sujeitos concretos a bloqueios reais, expondo suas vidas a um caos que os imobiliza, mas quer incitar “caosmoses”. Aquilo que nos imobiliza, por sua vez, são os processos de subjetivação capitalísticos, que exaurem nossa potência de desejo, pré-significando nossos fluxos produtivos dentro da normatividade do capital (subsunção da arte, subsunção da política, subsunção da clínica, subsunção da cartografia – tudo a serviço de uma reprodução social colada ao significante capitalístico). (…)

Para o texto completo baixe aqui

Publicado originalmente na Revista Indisciplinar (UFMG), 2015

I cannot evaluate jewelry (long)

I cannot evaluate jewelry

You want to write a text about not having the body of text. Write be a text without references measure placement – to be a text that opens up other texts (?). (Or enclose it? Deny the possibility of connecting with other ones?, as if it were denying all linearity.) Reduce each substantive to a sign. You want to deny it’s nature text and call it diagram (foundational diagram, functional diagram). You want to go back to it, to the diagram, and cut out a piece. Zoom in on it. You recognize that there are processes of destruction that you collect, that you look for to transform. The not so new, and shelter the new, but you cannot in your urgent time consider everything, the whole. (Complexities…) The edge of the whole that passes by you (along side, besides), is acknowledged as contingent, it’s a whole that is open by / in cracks. The metaphor of a passage, a world in which we are ourselves the cartographers, those freedoms they give you more world. Not the world but other ones to whom you, self delivered makes another piece.

You open a little more of the diagram, that besides perceptions and intuitions take you back to the sensation of slipping into a site. That’s how you realize connected connective possible worlds. There are spaces that encloses themselves as bubbles there are tear out spaces, they became interstitial, porous, as that rupture that dematerializes and disintegrate. You feel the disintegration with the world, the pleasure in your throat and that wants to come out. Comes out as a scream armed with human minds, all of them are possible to be loved.

(…)

This text is its own pornography. This text doesn’t have legs or manner. You don’t know from where to start. If you want, it might not be art. This text, anyhow, is not yours. But right now it became yours.

(…)

You don’t chew what I gave to you. And I take all of it with my hand. I told you brief things. I told you what I thought. Where does it take me to? When I say I don’t know who’s going anymore. That’s what I say. And the heat, the entropy, or the combustion that burns in front of you, and you take with. What I give to you is not me anymore. When I say “then” I already gave to you. So, o que eu dei para você se torna minha boneca por um tempo. (Mas são as minhasguts agora. Você consegue ver isso?) That’s why I chew up to show to you. How is it to you to eat your own guts.

(…)

(Another day) somebody called me. (Not that old men from the street.) He called me as something found out, scared with his own thing, that he was bringing to show me, straight from his past. Wanted because he wanted. My way would be the plot of the drama. He said he read me. He found the proper words. Briefly interpreted me, and told me what was his goal. Showed me his short tongue. Offered me a coffee. Smoking several cigars. One after the other, quicker then I could say anything about his hieroglyphs. Not even without headstone, nothing old as that old, it was just a fresh recovery, of a gesture I don’t recognize. Gestures over a silver matter, as if was a scrawl in an aluminum plaque, an old plate found in the dawn in the street. In the journey between the bar and home-and-studio. I don’t judge. First, I looked for the secrets. He was looking for the relevance of what he was carrying. The memory should be done, I said, for the same one whose secret he himself didn’t knew if existed. Then, it’s when no one knows if this secret has any bottom. I cannot evaluate jewelry. I told him.

(…)

Today I read a text full of “criticism”. Gush everywhere and slippery words, the text affirmed some uncompleteness not to need to defy itself, it alleged a certain independence from that production from the 70’s. It tried to build up its own independence by disconnecting from any and everything. Wanted to create its importance by drifting some experimental beginning that had anything radical at all, but took resource of empty and cheap signs from a tradition one century questioned. Yes, it could exist Rothko, De Kooning, Others, but not that that was supported by means of a simulacrum. And other concepts. The mistake of Baudrillard. The soup of words washing out a discourse without North (and chance). Radicating concepts. Claimed to be theirs. Opening up a terrain of exclusivity. And exclusion. Media by media exchanged anything by any other as if it was anything else, I was watching, and it melted the plastic but it wasn’t as Alphonsus does.

(…)

I’m not talking about controlled word. Not measured word also. I wanted to avoid the gush that is disguised as madness, as looseness, as ( ), I wanted to find the text that would be made of a continued meaning net, all of it opened as loose cunt, all of it straight upright as a pole. That’s why I went through again texts written by myself – I appeal to their holes that I couldn’t remember. If I find them after they became meaningless it is not because they can be reborn again. But it’s because they never had life. (Has life what wasn’t read?)

(…)

If the history would work through forms – and that’s not what is interesting here -, what is it that the concept of history potentializes? (…) Intensities networks. Potentiality maps, as affective insurgences, contamination modes. Makes me think: a historiography that doesn’t “capture”, but one that operates, before, its own abstract machine. Abstract history. Real history.

(…)

The memory of the text (of the talk)

The memory of the usurpation

The power of conservation

The desire of the uneditable

I’m strength against those strengths

I don’t even capture my self

(…)

The object destruction

destructed

—————

perversion

————–

art field

(…)

Make space for the new. Qualify the new. Find dialogue in my own generation.

(…)

They are so dirty. They don’t want to participate. They don’t want because they are ashamed, but because they have an alive nature filled up with re-uses and they built their own fictions by means of the delirious death matter, from the other. Detachment they are the ones who have, as I saw them dragging pipes five or six blocks down road, as I saw them arriving at the corner of the square with the cachaça and the cognac. (This a bit of gold!) And in the quick cataloguing of those drummings configuring instruments and drums, tamboretes and emptiness (you need some emptiness, inside, after all, to make it resound). Me and my belly in that crossing, of converging traffic lights, illuminated without knowing by the police, closest to the ground then anything else (even closer then that flying thing that scratches like nothing else the black dust of the streets), feeling the cracks between the pieces of granite, the sound comes up before to the inside, and after, to the outside. There is dread, there is hole in the t-shirt, there is symbol, anarcho-punk, there are signs that I don’t know. Noise. Scratched. I felt. I felt on my belly the sight without spectacle, see?

(…)

That debate was a meaningless recuperation, for some, of what happened in the 80’s. We saw a film, if it wasn’t embarassing to show, after all, so many of them had stubble, showing their regularity with the curve and the texture of the stone, the spirits rhythm, the sun in the fake canvas, there was no real painting. They took the boat, to that island, they took globo (television) and it was film globo, look at that, film!! The lipstick red, and she wasn’t the only one. Everything was a bit gross, irritable, it wasn’t because they were slowly outrageous, after all, we are in other times, and in such times, look at that sluggishness, of the dialogue! Different points of view. The vision of the fragmentation is that that acknowledges the differences. E as defende? But then what? Authority of the re-signification. To the other one was a historical position. His trunks. Discourse to break this and that. Now he has the same tenor, does he? To devour. How fresh is this memory of his own immeasurability! How fresh… But also, authority to model a discourse from a production, from their own production, or make it their own, also, from the discourse. Will to gather. Happiness, infantilism. Anyhow, after all, pleasure “is (was) imperative to the work”.

(…)

I am an industry. See how I produce a series of, a volcano of manifestos. Extracts, cuts, processes. Analysis. The other, about the other. They did, they said, or they didn’t said. I would call myself a culture industry, not if they didn’t do what they did with that, with the term. Co-opted. Wrong, unfair, anti-aesthetical. Not a person, not collectivity. Productivity, productivism, performativity, reproductivism, performativism, culturalism, classe cultural, capitalism, cognitivism, cognitive capitalism, … What I always wanted, truly, was built up a force against all conservativities. I made an uncertain line between clouds, conservation – experimentation; reproduction – differentiation; authorship, identity – dispersion. Since the beginning. Rupture events. I had in mind, but it wasn’t so clear at the time. A blurry and porous strategy, possible and impossible, invisible machine, truly, an errant diagrammatic body, a fatal doubt about a participation. Perceive and scream, in a short and fragile answer, program that pushes away outside of itself whatsoever creates a terrain of exclusivity, of property, of unequivocality. Sign control? Decoding. A lot I wanted to eradicate, and as a war mission, in the middle of the battle field, I would be able to remove the war-like powers and put in trenches, only trenches, to make think from above the earth, from the intensive struggles, from the ways of defending another thing, matter: expression.

(…)

Who is this you that placed yourself in front of the whole thing? From the extensive moment to your body, organs in reception, deserted in this place without subject or object. Who?

Who is this you that acts, that requires a close sight and places yourself as a sage just as the other one that elaborated the first concatenation? Who do you become, looked after by theory, who would be an archivist in the poiesis of the Archive?

You adopted a montage tool, adopted an open problem. You abandoned yourself in front of the incomplete thing, because you don’t know about other forms. Formalised. I try not to extinguish the possible relations between the times, what can be understood also as subjects of analysis. A decade selected to elaborate the doubts about it (1970). More hypothesis about the dynamics of an art field in Brazil (nowadays). Brazil big thing. Could select another way. I propose, then, to “signal”. (Procedure that no one ever understood.) (My sister said, that I like to say “understand”.) To approximate, to signal, strange affects to an action between the expressed matter, what I “should” do and the historiography incited by the events themselves. I pointed that they are not framable in that “institutional critique” (Fraser), comprehension that would eradicate the heterogeneity of a production that enacts, in other ways, the making-political of a field.

Analyzed events. Archive of emergency. The experience of the art thing (piece). Production, “effected”, assemblage. Investigation, conditions, epistemology (of the arts).

(…)

What happens in an art class? You wait to listen to it all, what the other teachers say. Its a Forum. Radical Education Forum. They have a common background, and then maybe me too. But here… I have to find again this common other, common ground, and think about Jorge and Lenha in a class room. What do they do to people? How they became more generous, they are much more generous, then the general researcher. The severe researcher, the analytical researcher, is itself the archivist acting and manufacturing, nominating fields, but rather, within the participants and interlocutors of their own (parts, parcels, strata). Desafio. I want to listen to. We, me and you, we make ourselves artists. Então você pensa em tudo o que já pensou em desconstruir sobre ser artista para dar suporte a esse território.

territory = meaning

(…)

Being an artist means to take risks. Not knowing what you are doing. Not knowing if the knowledge is applicable to that. Knowing that it is risk, yes. That is it a line of indetermination. Takes risks. And how did I took mines, less and less, since I started to write that way. (One truth, about systems.) I should forget. That’s it. Should invent less should. Said that, I said, I seat down to write manuscripts.

Without being this or that. Without capturing myself. Without wanting to be one body. Love yourself (also).

(…)

Cristina Ribas

*published in Escritos de Artista, Michel Zózimo (ed.) 2013. Porto Alegre.

Para exceder uma cidade, um corpo

*Inserções sobre a cidade de Guga Ferraz, que repete o homem
Pedaço de corpo. Este texto é uma parte – um pedaço de pensamento-sensação sobre a produção de um artista. Surge, existe, se escreve, a partir de um corpo (o meu). É lido em outro (o seu). Um texto é uma reação e um desnudamento. Escrito para você. Este texto é uma resposta à apresentação que Guga Ferraz fez de seu trabalho em conversa realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage no Rio de Janeiro. [1] Retirei alguns pontos para seguir atirando palavras. O texto refere-se à parte do corpo (de produção) do artista – bem por isto peço licença para agregar camadas de terra aos homens nus. Fazer considerações às proposições críticas do artista a questões da cidade do Rio de Janeiro – território produtivo comum, onde vivo há alguns anos -, assim como aproveito para fazer observações à exposição propriamente dita e ao fato inalienável de que o lugar onde expõe agora é uma galeria comercial. O diálogo (do artista) extrapola a capacidade da cidade-da-arte, ou faz dela o limite da sua expulsão, e o texto duplica o debate sobre as contradições intensas que perfazem a cidade. O texto, como proposição, é só um fragmento do manifesto possível. Outras palavras ficam não ditas para que um próximo corpo fale.
Troquei momentaneamente homem por corpo. Na exposição “A cidade repete o homem” na Galeria A Gentil Carioca (onde estava exposto o trabalho de Guga Ferraz, entre Maio e Junho de 2007), há um índio com parte das pernas faltando – imagem apropriada. “Veste” arco, flecha e arma. Um índio é um homem. Mas é o mesmo que a cidade repete? São nove imagens de índios colados sobre uma superfície plana e rígida. A pele do índio é desenhada com retícula. Faz um índio extirpado de seu contexto, que é mais como um super-herói em vídeo-locadora. Corpo de índio é corpo de homem.
Repetição por repetição, você perguntou antes o que define um corpo e a cidade. O corpo não é a cidade. Porém tem relação com ela. E pode ser então que um corpo exista expulsando-se do corpo do outro, tomando espaço, ocupando. Expulsando-se do corpo da cidade. O corpo (humano) é uma superfície sensível, capaz de afetar e de sentir. Capaz de repetir e de diferir. Mas nunca existe na unidade. Existe contaminado, híbrido, modificado, incompleto. Corpos e territórios se mesclam, fazendo-se pela repetição e pela diferença na proximidade de outro corpo sensível, na dimensão de um poder ou do seu assujeitamento. Agora, sobre o corpo que se faz por fora do medo, me parece que sobrevive por que na confusão dinâmica produz uma estratégia (nem sempre artística). Esconde-se no escuro. Pula o muro.
Troquei, mas não sobrepus. O que define um homem e um corpo são perturbantes em aberto. Mensuráveis na medida da enunciação e da experiência. Na exposição há outras imagens de corpos: à esquerda há um exposto, desta vez o do artista. Transposto imenso foi feito para pisar em cima, emborrachado entregue, versão do “Rendido”. Ali se chama “Para saber onde se pisa”. E há outro corpo leve na segunda sala. A imagem de um corpo-menino, rodopiando, trampolim invisível (“Mortal”). Estas são as imagens diretas de homens, ou de corpos. São também o que se compra, mas não objetivamente. Digo melhor, sendo ela uma galeria comercial, não se compra apenas a materialidade (a imagem), mas a inteligência (do artista), e o interdito entre as imagens. É necessário ver de longe, remontar. Ver do alto como num salto lento.
Vi num sonho. Era como uma vista aérea. No topo de um morro – que era um parque – corpos-de-gente morta tinham sido descobertos, desfolhados de um embalsamado antigo. No sonho eu sabia que estavam sempre ali no parque, sob a grama, conservados em camadas finas de terra. Então helicópteros chegavam e, como uma cena de Antonioni amplificada (Blow up), revelavam cadáveres conservados de homens e mulheres em camadas de terra vermelha. Minha irmã do meio chegava assustada e chorava, fui abraçá-la, mas eu tinha as mãos sujas de terra. Depois, no meu apartamento, era dali que olhava o parque. Não podia abraçá-la e na minha casa descobrira também, assim como há nos parques, uma pequena porção de terra. Desconfiei da terra nas minhas mãos, era um pesadelo.
Corpos do tempo do sonho. Foi naquele tempo a ocupação criativa das ruas pelos estudantes em 1968 em todo o mundo, e também os montoneros, os MR, a fuga, o Araguaia (corpos escondidos, homens, mulheres e crianças). No aniversário de 40 anos da revolução muitos atores acordam, uma infinidade de narrativas necessárias emerge. Pode-se rever o trauma, analisar ações e devolver a potência aos corpos. São feitos descobertos – e porque não abertos – tal como os arquivos da ditadura. Para revelar um corpo pode-se dar a ele uma imagem. Contudo, é necessário gerenciar as novas imagens, fazer delas um contexto político menos do controle e mais de um espaço de interação comum, de contra-respostas, de perturbantes.
Um diálogo nunca se sabe onde começa. (Quem atirou a primeira pedra?) Sem palavra nua, na cidade complexa um emaranhado bruto de informações atravessa. Minha irmã mais velha disse que uma criança só formula uma pergunta quando está pronta para receber a resposta. Num paralelo viável, colocar um trabalho de arte na rua é abrir-se para um diálogo, mas é preciso pensar em como receber as respostas. Ele faz uma reação à realidade da cidade, ao que aqui é visível ou invisível, tolerado ou intolerável. Guga se coloca em reação, assim ele diz. A resposta, contudo, insurge na fusão àquilo que a engendra. Muito difícil separar ação e reação. A resposta é estratégia inerente à situação de periculosidade que a gera. A reação do artista que, antes no espaço público da cidade, aqui é modificada para o espaço da galeria (adaptação contextual e formal). A vulnerabilidade da superfície nas cidades, ao revés, não é o resguardo do espaço da galeria. Sem topar o todo da questão – separação considerável – sugiro posicionar seu corpo no espaço entre as imagens. Ali ou nas ruas. Ali ou nos ônibus.
Multifacetada em camadas, a cidade e seus equipamentos só podem ser medidos também na experiência do corpo. Traficar será movimentar por fora dos instrumentos de controle, de constituição da cidade funcional, maquinal, estado, poder. A arte pode ser uma linha de fuga, se souber mover-se. Assim também o texto em outra cidade-fluxo, não superfície (primado do visível). Deverão circular livres, traficados. Enunciar é posicionar-se entre demais. Dizer o não dito. Um texto. Um texto sai de um corpo vivo que se desnuda com a escrita, e talvez por aí se entregue. A cidade não tem lugar para um corpo nu. Tão logo ele respira, outro corpo sobre ele cai.
Expor um corpo. Na exposição percebo os homens e seus corpos nus. Expondo um corpo, não o dele mas pelo texto, vemos corpo-superfície e vida feitos nus. Assim ele os fez: vulneráveis. Retícula. Pixel. Recorte. Na fotografia (assim como na escultura) um tipo de poro dilatado revela uma estrutura sempre recoberta (grão de cocaína, representação nunca vista direta, sempre escondida no plástico preto – imagem pública da morte). Imagens sem fundo, imagens sem contexto. São corpos moldáveis. Frágeis não por sua imagem direta, sem sangue nem apelo, vitimizados pelos títulos: “Coleção Bala Perdida”, “Projeto para cadeado de vidro”, “Troco de arrego”, “Procon do pó”, “Drug Bible”. Perigo eminente, a bala perdida; perigo desejado, a “purpurina” (“C17H21No4”).
Você vê ali que um homem se camufla de outro. Um corpo pode ser um encosto para um homem. Um corpo é uma ferramenta na cidade. Usado sob a força do comando que o faz agenciar elementos, valores, mercadorias. Um corpo é como um mapa para uma cidade: só uma ferramenta. Da mesma forma, ao revés indissolúvel, o espaço da cidade é para um corpo o local de sua produção. São elementos de uma equação nunca repetível. Ou sim. Se assim se afirma. A cidade repete o homem porque suporta máquinas de fazer o corpo do homem dentro da proteção e do medo.
“Polícia / milícia / traficante / outros”. A indefinição dos atores é uma produção que significa o espaço da troca. A potência de diferir de alguns é a capacidade de camuflar-se um e outro, não um ou outro. Definir atores serve antes para defender do desconhecido. Produzir o medo. Do lado de fora, em excesso, sobra o civil – moeda de troca do jogo de adivinho. Civil para tudo o que é “outros”, e que nem é mais produto da cidade – utopia da arquitetura, que se desfaz. O corpo do civil é só superfície de bala, só se toma conhecimento porque a bala não perfurou o concreto da cidade (concreto em estado morto), mas um corpo vivo. A produção do medo justifica as ações da polícia, do estado, da imprensa (espécie de roleta russa em que a função circula sem parar). Não se dá fim à guerra porque o inimigo está em qualquer parte e se faltar também será produzido: dão lhe as balas, o pacote, o tiro na cabeça, quase sempre de costas. Para acabar a guerra só qualificando o inimigo, contradição de que, ao determinar publicamente as características do inimigo, aquilo que é polícia será capaz, por fim, de prender a si mesma.
E o traficante não é de sonhos. Seu corpo não se vê, a não ser como morto (jornais). Não tem voz, ora porque não quer ser visto, ora porque não pode falar. (Guerra intransmissível.) Poderiam falar o indizível, desnudar a guerra onde se encaixam. Silenciam a bala. À bala. Na cidade-do-asfalto, por outro lado, há corpos que se pronunciam. Retórica excessiva. Indeterminação proposital e irresolução de sua finalidade última. Mostram-se como afirmação de poder porque são o poder instituído. Defendem ou driblam? Suas vítimas são os corpos que, se forçados, se entregam. Estes não tem poder. Não respondem. Só repetem.
Nossos corpos. Indefinida atribuição na nudez da vida, uma ação só é realizada pela prática acoplada ao desejo do corpo. A nudez do corpo não é retórica. A sua vulnerabilidade contempla a inexatidão do seu uso. Para além da unidade de um corpo, são agências móveis que os modulam. São movimentos rápidos que desviam.
Partilha do mesmo (mundo) ou expulsão forçada dele. O ônibus em chamas é um coletivo: ali se partilha o medo, que é real (como disse Luis Andrade) [2]. O mapa em chamas mostra os pontos de conflito na cidade (“Roma de Nero”). Mapeia sobras do espaço nomeado e conhecido. “Ônibus incendiado” transbordou o desenho sobre as placas e penetrou na outra cidade, aquela das marcas e das capas, contradição daquilo que ora se instrumentaliza, ora diverge no caminho necessário do protesto, e que faz pensar: é possível confiar na fortaleza gráfica da imagem, ou é preciso sempre contextualizá-la? Esta é a mão dupla da multiplicação da imagem da intervenção, que o artista atualiza quando o ônibus vira “Limosine”. A gráfica imprime uma informação estrita. O medo é coletivo. Ou comum. Assim também sua produção. E o assalto a mão armada é repetido tal como os equipamentos da cidade. Guga imprimiu 100 adesivos para ônibus (“em caso de assalto, não reaja”). Na repetição pelo excesso pode ter lugar uma manifestação indireta: a multiplicidade de superfícies da cidade é ocupada densamente por imagens suavemente estranhas a seus sinais.
Fazer arte na rua é despertencer da arte. Cidade-da-arte que repete um homem. Mas o que se propõe? Plottar um corpo é dominá-lo? E a cidade? Mapeando, não oferece lugares aos corpos. Mostra na verdade a indefinição destes lugares, pela nudez dos corpos. No jogo da dissimulação importa perguntar que quer quem na cidade? Pergunta que trará a seguinte: a quem é possível se aliar na cidade? A cidade só existe com os usos que se produz sobre ela. Tal como os usos do corpo.
Para se reconhecer dois corpos gritam. Quando gritam entrevêem um território comum. Demoram a se entregar pode ser ora por que tardam a decifrar seus sinais, ora porque não querem entregar-se ao contexto comum (não te vejo, miragem, temo). A não ser que gritem antecipando a imagem. Se todos têm armas, como saber quem é aquele que defende? Gritar requer um corpo exposto, posicionado. É uma reação (não é a bala perdida, projétil no escuro). Em outro contexto, resposta se torna explícita, na (anti)tática da galeria de arte trata-se de fazer arte em certa medida periculosa. Entregar-se, para quem?
Em outros trabalhos do artista, o diálogo fora com a imprensa (produtor do contexto insensível, simultaneamente fábrica da imagem do medo, pronunciante da segurança comercializável no espaço da cidade). Naquele meio, em geral, a difusão da arte encontra mutismo e descontrole do discurso sobre a arte. Mas alguns aspectos são interessantes no caso de Guga, como a camuflagem na página policial e uma repotencialização do trabalho a partir do lugar de conversa desejado (forjar um discurso policial, ocupando seu espaço). A imprensa ora confunde, ora entrega, e se torna mais um discurso na diversidade de falas palpáveis da cidade. Mas, no caso do artista, como ele deixa em aberto um espaço para receber outras intervenções? Reações?
No espaço crítico de enunciação o que se deseja é uma difusão dispersiva – contaminar corpos. Não debelar. Na conversa no Parque Lage Guga fala a partir de um vocabulário estranho. Eventualmente policial. Eventualmente traficante. Palavras estranhas ao campo das artes, a não ser agora, onde entrevemos um espaço de resposta que não o senso comum da (in)segurança. Outras palavras revelam outros corpos. Periculosidade. Do que se protegem os corpos na cidade? Ser artista é desnudar a si. Diferente do trabalho na rua, na galeria tudo tem identidade, assinatura, autoria. Institui-se. Retira o artista do anonimato e insere sua produção numa resposta formalizada e por isso mesmo perigosa. Será que o desnudamento nomeado é uma entrega ao campo da arte? A comercialização de sua esperteza? Ali a nudez do artista é também toda sua vulnerabilidade. Mas a palavra é necessária. Ou mesmo o falso mutismo da imagem.
Entre a percepção do contexto sensível e a pertinência a um contexto político, jogo tornado explícito por Paolo Virno [3], um corpo que se pronuncia se torna um corpo sem medida. Pela via da arte, não retilínea estratégia ao estado da insegurança, um corpo-de-artista pode se tornar imprevisível se suas respostas são desvios aos medos hipócritas da cidade. Incendiar a limusine denuncia o já sabido: a partilha ao território comum da periculosidade e da incapacidade de ação, ou a afirmação de que não há segregação social que não seja resultado da manutenção de alguns controles. Guga desenha um mapa. Ninguém está “de fora” da guerra, seja porque esquiva-se dela, seja porque a consente. Mas, na galeria os patuás compráveis não defendem da cidade-sem-estado. Missão difusa. O desafio de fazer arte nos termos da objetividade de uma reação é a ousadia de destituir a finitude da vida mensurada pela mídia, pela polícia, tornando-a da mesma forma uma ferramenta coletiva, de muitos. Na unidade-multiplicidade da equação, está também o desafio de fazer do corpo do artista um corpo sem medida. Flexível tal como aquele jogo do erro para assinalar um colchete dado a cada personagem real: polícia, milícia, traficante, outros. Ao que adiciono: artista, público, você. Desafio desejado de não repetir a si como elemento na cidade mercadoria, mas encontrar o lugar da ação potente. Não da resposta reconhecível. Fazer-se corpo coletivo, corpo partido-com o corpo do outro. Entregar-se à incerteza da constituição política – imprevisível constituição indecente frente a um estado escuso.
A morte é indecente. (Palavras sem sentido. Palavras sem corpo voam como balas perdidas, caem onde?) Assim Guga disse ao final da fala no Parque Lage. A morte é indecente. Ao que eu respondo que o não comando sobre a vulnerabilidade da vida é que é indecente. (Ou esta é a condição última da vida e do vivo?) Para saber onde piso, tateio se aquele corpo exposto é realmente um corpo vulnerável. Um corpo, não uma unidade de corpo, só existe na medida da sua experiência. Daí que atos passionais excedem os corpos. Revoltas excedem corpos. Colocam-nos novamente em situação de vulnerabilidade. A violência os violenta. Você responde. Excede a um corpo. Doa-se a si disponível para sua desmesura. Ousa, esquiva-se. Improvisa. Salta no vazio. Mortal. O que é homem, e por contigüidade humano, vai se refazer de uma desordem. A dimensão da não-repetição de um corpo é a dimensão de sua potência – de diferir.
[1] A Conversa foi realizada dia 13 de Maio de 2008.
[2] Este texto estabele um diálogo com o texto de apresentação da exposição de autoria de Luis Andrade.
[3] Refiro-me aos textos de Virtuosismo e revolução, de Paolo Virno. Ed. DP&A, Rio de Janeiro, 2007.
Publicado na Revista ReDobra

A imagem da esfera pública do intelecto: o que pode estar “fora do eixo?”

 

Meu nome é Cristina Ribas. Eu atuo como artista (em uma produção autoral e também em grupo) e como pesquisadora, e também trabalho junto com uma Arquivista, No Arquivo de emergência – que, pode-se pensar, se aproxima das formas de curadoria contemporâneas. Mesmo com isto, para mim é uma situação bastante nova estar numa mesa sobre curadoria, especialmente porque eu não me dediquei até hoje a investigar o que é curadoria. Concluí o mestrado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), na linha de Processos artísticos (para artistas), mas escrevi sobre trabalhar neste arquivo. Não escrevi sobre o meu trabalho de arte, resolvi me “deslocar” ou “suspender” a análise de um processo criativo pessoal para observar criticamente o que é dedicar-se à produção do outro, que é o trabalho que o Arquivo realiza: criar uma situação material e relacional para conectar eventos em arte contemporânea brasileira.

Então eu me envolvo desde 2005 com este trabalho, que ainda está em processo e tende “ao infinito”, ou enquanto ainda reverberarem as ações às quais se dedica. A partir do enfrentamento de sair da análise de uma produção autoral e encontrar o trabalho de um outro me pergunto: que outro é?; que tipo de trabalho esse outro faz? Ao trabalhar no Arquivo, na pesquisa, precisamos sair da zona muitas vezes confortável da criação autoral e deslocar-se, da mesma forma que a ambição do artista pode fazê-lo buscar o espaço público (…) então com o trabalho do Arquivo de emergência existe um certo esforço para entender o que é lidar com a produção do outro e produzir algo a partir daí, ou seja, um saber transmissível a partir dos eventos, dos acontecimentos, das obras de arte e de suas inteligências – o arquivo propriamente dito. [1] Esse é um exercício que o arquivo pretende, em relação a outras produções de arte, e acredito que isto se aproxima de um procedimento de curadoria.

O que eu trouxe para falar hoje é motivado não exatamente por isto, arquivo-curadoria, mas por um encontro que eu tenho com alguns autores que me ajudam a preparar um terreno para pensar o acontecimento da arte e as formas de cooperação dos agentes neste campo, em relação com a sociedade. E ainda, me ajuda a conceber um “fora do eixo” subjetivo, como estado ou como condição do sujeito. Walter Benjamin, no início do século passado fala do “autor como produtor”. Ele provoca esse deslocamento, nos trazendo um desejo. Benjamin pensava tanto que o que ele pensou faz sentido até hoje (…). Naquela época, se eu não me engano, ele trabalhava como jornalista; ele escrevia muito porém se sentia um pouco distante dos movimentos que o mobilizavam. Ele fez uma proposta: de que o intelectual saísse da sua posição de intelectual e se aliasse aos operários, digamos, se aproximasse dos operários, para tentar entender as condições produtivas, a revolução industrial, a má remuneração dos operários – que eram a base de um sistema econômico pautado na mais valia. Aproximando-se, poderia tentar entender as questões próprias do operariado, qual sua luta política. Anos depois Antonio Negri, militante do movimento dos operários na Itália vai falar: “olha só: se a gente quiser ficar do lado dos operários, se continuarmos chamando-os de operários, a gente nunca vai distinguir as classes sociais”. Ele propôs: “chega desse negócio de operário, a gente tem que olhar para uma capacidade que está no operário, uma capacidade que não está só no operário, que está no intelectual também.” [3] Reforço: a reflexão serve em parte para mapear e constituir um terreno de atuação para o campo da arte, ajudando a elaborar a exposição das condições de realização, acontecimento e atravessamento das práticas da arte. Negri afirma que se olharmos para o operário apenas enquanto operário – e isto não significa abandonar sua realidade e suas questões específicas – vamos continuar separando a sociedade: a gente precisa olhar a sociedade. E olhar a sociedade pode compreender reunir os saberes, saberes instituídos e saberes subalternos ou alternativos. Se a filosofia política, por sua vez, elabora o campo das relações humanas e sociais, não significa que ela deva esgotar uma elaboração sobre o acontecimento da arte, e é neste momento (imanente, simultâneo) que o próprio campo ou circuito da arte emerge na elaboração da especificidade da arte, naquilo que ela se conecta e se diferencia de outras práticas sociais. Nas minhas leituras, em especial Paolo Virno é um autor que dá as bases para seguir esta apresentação. [4] A partir de Hanna Arendt, tomei conhecimento deste conceito de “esfera pública” que é desenvolvido por Virno. Ela nos leva à Grécia para entender o que era a esfera pública, que a princípio era uma esfera só dos homens, um espaço de argumentação e, sobretudo, não violenta, e por isto, política. Na constituição da esfera pública, que é o exercício mesmo da democracia, a força física ou a violência brutal não servem. Serve a palavra, serve a capacidade argumentativa. A base da esfera pública é, portanto, o que se chama “intelecto em geral”, e é o intelecto que hoje, especialmente com as proposições em relação ao Estado (poder de governo), constitui um espaço comum, pode-se por isto falar na “esfera pública do intelecto” como algo que excede o estado. E esta é sua potência. E a capacidade argumentativa – voltamos um pouco a Negri – é também uma capacidade criativa, que está em cada um de nós, independente do cara ser intelectual, operário, (…) e por extensão artista, curador, crítico, etc. (Não há tempo aqui, mas acho importante pontuar que estas características são o que constituem o chamado “trabalho imaterial” que se funde, para estes autores, na sua forma de acontecimento, com a virtuose artística.)

Trago questões que me inquietam bastante, que surgem na minha experiência e que se tornam inclusive mais claras junto a estes caras. Tenho vontade de falar junto com eles, e não falar da teoria, falar do escrito apenas. [3] Então, de que maneira e por que construímos parcerias, associações, instituições, curadorias? (…) Pensando aquele deslocamento que Negri propõe, e pensando aquela capacidade argumentativa, crítica, criativa que Virno também expõe, gostaria que observássemos, assim como se observa muitas vezes a prática de artista naquilo que a constitui especificamente, qual é a “capacidade” da curadoria. Tendo elaborado esta questão até o momento, penso que é uma capacidade de consignar. Consignar é colocar duas coisas próximas, possibilitar encontrar um signo singular a elas – e isso também pode ser pensado numa anti-curadoria.

O grupo norte-americano Art & Language organizou um arquivo super interessante, que está hoje on line [5]. O arquivo começou com uma produção de “anotações” de termos, ou terminologias, e suas definições (um termo pode ter mais de uma definição!) com uma infinidade de conceitos que serão diretamente ou não tomados em partido com o acontecimento da arte. E a gente pode colocar dois termos um ao lado do outro, aí eles criam três simbolozinhos para consigná-los: capacidade de associação dos termos por conjunção ou implicação [] ou conjunção ampla [&], compatibilidade [+], incompatibilidade [-], ou incapacidade brutal de produzir relação entre os termos [T] ou um aspecto transformacional entre eles. Me parece que consignar depende de uma capacidade criativa e, se voltarmos à Bienal de São Paulo de 2008, era muito o que os curadores queriam – atiçar a montagem, a leitura crítica e dialógica das obras (mesmo que pouquíssimas obras deixassem espaço de resposta).

É interessante observar que a capacidade criativa e cognitiva necessária para o acontecimento da obra talvez seja a mesma que constitui a esfera pública. Neste sentido se pode pensar a liberdade associativa e a possibilidade de redes de cooperação. Estes autores se preocupam por falar disto na atualidade porque em parte a sociedade ocidental produz monstros, ou estruturas de governo, de guerra, de controle que sobressignificam desde as práticas individualmente (o que faz o artista ser um artista? o que faz um curador ser um curador? o que faz um historiador ser um historiador?) e também as instituições e as formalizações destas cooperações.

Me interessa expor que às vezes (e isto se confere muito nas relações dadas na atualidade do capitalismo) as capacidades criativas e as formas de cooperação quando entram num certo tipo de regime ou de sistema elas somem, elas perdem o valor. No caso da arte, a experiência sensível enquanto tal acaba sendo qualificada, e acaba sendo traduzida para dentro de uma experiência que se torna sim uma experiência de consumo, uma experiência de poder, econômica. O que me preocupa é como a gente mantém a vitalidade das nossas relações junto, ou por fora, ou aliado, ou numa tangente, contando com a presença do sistema capitalista. Por isto, “fora do eixo” como condição subjetiva de busca de produção de novas relações desse sujeito que já tem uma capacidade criativa, cognitiva é, talvez antes um deslocamento subjetivo instituído, não como resistência a um sistema outro ao qual seria alternativo, nem como cooptação a algo maior, mas como uma forma de ser, que se afirma enquanto tal.

Agora mais duas últimas observações sobre o sistema capitalista: (1) que o capitalismo é uma forma de relação, ou seja, o capitalismo ele não está aí enquanto tal, não sabemos até que ponto ele é “estável”, pode derruir visto que tem certa fragilidade, bem por isto me parece que se pode provocar intervenções nele; (2) será mais rentável dentro deste sistema, será mais sagaz, aquele que for mais desterritorializado e aquele que for mais dinâmico. Ambas as definições são de Negri e Lazzarato. E se a gente pensar, hoje em dia, são duas capacidades que muitos requer aos artistas, quando eles viajam em programas de residência, quando têm que produzir relações com o estrangeiro, capacidade de chegar lá e se sentir outro, apreender e dialogar (…).

A aparente impossibilidade de estar por fora desse sistema econômico me parece a mesma conexão que temos com um circuito ou sistema de arte institucionalizado, onde as funções atribuídas a cada ator são bem determinadas: curador, artista, colecionador, museólogo, etc. Contudo me parece que este evento testa a possibilidade de produzir movimento, de produção em cooperação com sistemas e não exatamente por fora disso. Produzir interferências, cortes, rupturas subjetivas e eventos abruptos, que podem ser propositivos, que podem modificar as funções deste sistema, constituem uma esfera pública, nem tanto espacial (apegada a um território geográfico), e neste sentido ela não deve estar obrigatoriamente em espaço público, ou no espaço da rua, ela se constitui num espaço que seja comum, num espaço que haja minimamente várias pessoas, ou duas pessoas ou às vezes nenhuma (?) disposta a trocar, argumentar, construir; enfim, digo isto para gente se colocar a pensar. Nossa grande questão parece ser criar nessa esfera. Então, só pra gente pensar, o que a gente quer com as relações que propõe?, com aquelas relações de consignação?, transpondo as ferramentas do Art & Language, e repensar até que ponto a gente precisa e de que forma é estratégico ou é inteligente se configurar (que não é só se denominar enquanto tal) artista, crítico, curador (…) São questões para mim não resolvidas e que só existem no exercício de uma esfera pública de liberdade. Para finalizar minha fala quero ler um pedacinho bem pequenininho de Hanna Arendt: ela investiga a ação, e o drama, no teatro, que se aproxima do exercício da esfera pública. Sobre a ação, há o escrito: “pois a ação é o que estabelece o grande paradoxo (…) o conceito de liberdade foi criado ao mesmo tempo e não antes que o homem”.

NOTAS

[1] O Arquivo de emergência agrupa material de “eventos de ruptura” da produção brasileira em arte desde meados de 1998. O Arquivo inventaria uma série de conceitos fundamentais para sua compreensão. É exposto em instituições de arte ou não, realiza parcerias com projetos de outros artistas, coletivos e iniciativas autônomas. Consulte a página para saber a localização do Arquivo de emergência: HTTP://arquivodeemergencia.wordpress.com.

[2] NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre o Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

[3] Gosto muito de pensar em um saber que está disponível, e assim o livro me parece – só para não perder a linha (da leitura), o livro está no mundo, e me fascina que o livro escrito, o mesmo ao qual eu cheguei, também pode ser acessado por alguém do outro lado do mundo. (Isto também tem a ver com os arquivos.) Pensar o livro com o mundo, pensar o mundo com o livro. Eu sinto que estou aqui não para dizer de algo que está escrito, mas que fala junto.

[4] VIRNO, Paolo. Cuando el verbo se hace carne: lenguaje y naturaleza humana. Buenos Aires: Cactus: Tinta Limón, 2004.

________. Virtuosismo e revolução. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2008.

[5] HTTP://blurting-in.zkm.de

 

Texto publicado em Fora do Eixo (2010) escrito a partir da participação em um seminário organizado em 2008. Funarte / Brasilia.

Camuflagem

Camuflagem:

Reli um pedaço do Jacques Derrida:

(…) gênero daqueles que têm lugar, por natureza e por educação. Vós sois, pois, ao mesmo tempo filósofos e políticos. (…) estratégia (…) de Sócrates (…) desnorteante (…) enlouquecedora (…) simula colocar-se entre aqueles que simulam (…) pertencer ao genos daqueles cujo genos consiste em simular (…) a pertinência a um lugar e a uma comunidade (…)

Na atualidade, artistas não exatamente se caracterizam estritamente enquanto tais. Suas ações fazem migrar entre si fatos estéticos da crítica à política, desenvolvendo aprendizagens, tornando-se organizadores, educadores, gestores, historiadores, mediadores, entre outros. Novos corpos surgem nesses agenciamentos. Eventos recentes no terreno do Brasil expõem a constituição de uma especificidade na forma de “esferas públicas” temporárias e fragmentárias, sem esquecer que se tratam de proposições com especialidades próprias. Importam nas “esferas públicas” as intensas trocas sociais instigadas entre participantes não identificados estritamente a um campo ou circuito comum de produção cultural, mas a ele associados pela via direta das práticas, que hoje se abrem entre artísticas, comunicativas e expressivas, para desenvolverem problemáticas sociais vividas por todos. A esfera pública se inscreve, necessariamente, em um “onde”, como questão.

Ações neste “onde”, que não está dado a priori, parecem produzir corpos diversos (mais que humanos). Se tornam, é possível, elementos conectivos de um grande dispositivo novo, que converge ou diverge de um território em constituição: a cidade. Analisando ações em conjunto, observamos a diversidade das práticas e o corpo de uma coisa ainda disforme. Assumem existências sem finalidade dura. Outras práticas, porém, clamam direitos. Pensam essa cidade como território produtivo, lugar de enunciação, emergência do protesto. Nela tornam explícita a realização da vida. A cidade como território produtivo clama um posicionamento, mas qual será o corpo que nela atua?

Há algum tempo me dedico a produzir formas de fazer pensar e des/entender as motivações pelas quais artistas e produtores culturais, nos anos mais recentes, se dirigem a algo que cambia e cambia de nome, mas que constantemente se reinscreve como “cidade”. Nela(s), pela promoção de esferas públicas, ações entre pares e des-pares, provocam parcerias e desencontros, sustos e atropelos, coadjuvam uma série de expressividades, comunicações e intrusões. Nestas composições, há mediações e capturas. Nalgumas situações, nada melhor do que ser estrangeiro e brincar nas cidades desconhecidas para deflorá-las. Noutras, não é possível, e não se pode atropelá-las. Em alguns territórios não há sempre becos. Não há esquinas possíveis. Não há possibilidade sequer de escuta. Nada se captura. Em outros lugares, ações provocam alardes. São produzidas como em territórios neutros. São espetáculos desejados com promessas de sucesso. Mas, causam vertigem?

Interessa pensar esse território descontrolado para autorizar-se, talvez, a uma camuflagem. Estratégia (…) enlouquecedora. Perpassamos o risco. Não pode se tratar aqui de comercializá-las. Não podem ser nem turísticas, nem históricas, cidades inteiras. Maré e Alagados, territórios contextuais. Não se pode pensar quantos isso ou aquilo. Não se pode.

Ao mesmo tempo em que eventos no Brasil têm promovido o uso de “espaços públicos”, acompanhados de pensamentos teóricos que ancoram criticamente (em termos de linguagem) e afirmações (conquistas políticas), aqui de fato caímos na cidade do desmedido. Com isso, gostaria de suspender a certeza de que ‘sabemos o que estamos fazendo’ (discursos do empreendedorismo) e chamar para a uma análise atenta das possibilidades políticas dessas cooperações. Nem nítidas, nem verdade. Incitação de nascimentos, de coisas disformes informadas pelo protesto, que não podem se esquecer da presença política de corpos, em que se pergunta: qual a disponibilidade desses novos, outros, “corpo” e “cidade”?

Publicado no Caderno Provocações / 2010 / CorpoCidade, UFBA, Salvador

Três chamadas para uma complexidade

(abaixo estão trechos do texto, para fazer download da versão completa clique aqui)

Imaginar
Caminho pensando no tempo da vida neste lugar/espaço descendo e subindo as escadas entre os andares do curvilíneo bloco, onde antes se podia ter um escape para fora e agora tijolos de seis furos cobrem a vista por baixo do cimento espesso. O interstício vertical que prolonga a observação do percurso meio que perde a função na origem reificada. Como eu introduzo uma conversa por sobre essas camadas sujas da escadaria que leva do vão livre aos andares superiores? São os moradores que sobem e descem com mais intimidade do que eu, mesmo que eu tenha observado detalhadamente a espessura das linhas feitas nos idos da década de 40. Não só aquelas linhas precisas entre espaços fazendo paredes (os desenhos do arquiteto) como as rasuras que cobrem o palpável objeto de duplo apavoramento e maravilhamento refeito Pedregulho. Realidade visível e realidade projetada.

(…)
Coletivar
No deslinde do tempo do habitar um apartamento no prédio do bloco A, o Minhocão, o projeto de residência artística se torna reconhecer um movimento de memoração do projeto moderno por diversos vetores (privado, estatal, autônomo) e avaliar desde nosso lugar os modos como isso pode acontecer: que é que trazemos para o presente como herança desse período? A memoração sem dúvida requer seleção e reativação de diversas verdades que tecem a trama complexa do Pedregulho. Entender que o ponto inicial é não buscarmos uma utopia congelada nem vias de reproduzi-a ao modo vanguardista, e sim os seus contratempos. Aportar o que temos como próprio, a criação, e elaborar perguntas em direção àquela coletividade e às demais em formação, observando de que forma não nos perdemos nos desvios incansáveis das formas de captura, mas encontramos o tino da colaboração: há uma comunidade no Pedregulho, a mesma que estranha a chegada dos artistas, que espera a presença do Estado ou que a desconhece, e, talvez, a mesma que se envolve.

(…)
Desejar
No final de semana de encontro com o grupo Frente 3 de Fevereiro tivemos um debate intenso sobre o que pode ser atuar no complexo, antes, artisticamente. Naquele momento o grupo promovia uma série de ações no Morro Santa Marta e realizava entrevistas com pesquisadores e ativistas de movimentos sociais abordando temas como racismo, democracia racial e exclusão. A pergunta que nos cabia como organizadoras do projeto seria: de que forma a residência artística promovia ali mesmo no Pedregulho uma ativação das questões que interessa ao grupo fomentar? Nos idos do debate percebi que informar a comunidade do Pedregulho da articulação ampla – considerando pensamento e ação era o mínimo que se deveria fazer como requisito para acontecimento da “residência”. “Informar” sem dúvida tomaria as formas de uma criação artística, que tivesse inteira a intenção de fazer pensar as condições de sociabilidade não só no edifício, mas na cidade do Rio de Janeiro. Por aí se descobriu o regime de controle sob o qual viviam os primeiros moradores e se pôde observar de outra forma a atualidade dos costumes no Pedregulho. A criação de um dispositivo relacional pautado em imaginação e conversa (sob o olhar inesquecido de uma câmera de vídeo, é claro), trouxe ao “Pedregulho” as estratégias de controle social em voga na cidade, tanto na cidade oficial como nas periféricas… Assim que a determinação de um pressuposto artístico não poderia existir sem a maleabilidade de uma atualização: é preciso saber onde se está e direcionar o desejo equacionado com aquelas vozes.
(…)

Leia o texto completo aqui
Texto publicado no livro-catálogo
Pedregulho: residência artística no Minhocão
Beatriz Lemos e Cristina Ribas (org.) ISBN 978-85-61659-04-2 Belo Horizonte: Instituto Cidades Criativas / ICC, 2010

Este texto foi escrito a partir do projeto Pedregulho Residência Artística